A limitação "de berço"
Por Marcos Almeida
Minha memória pouco se recorda do local em que fui colocado para
ninar bem próximo ao Rio Verde, na casa em que morei em Pocinhos do Rio
Verde/MG. Contraditoriamente, a emoção dos afetos e afagos perduram além da
mente e se eternizam. A inércia dos dias atuais nos envolve em dicotomias e em
debates rasos, por se desejar a imposição do “decerto” em detrimento do
acolhimento e da complementariedade. Constatar a “lacração” de quem reivindica “ter
um berço” (seria de ouro?) está fadado ao desrespeito e torna-se hilário e
distorcido. E quem pode forjar a dileta razão (de estar absolutamente certo, na
sua visão) somente ao berço?
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| Júlia e Otávio |
Pensemos juntos. De início, “copio e colo” do clássico Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, um trecho magnífico que eu havia sublinhado quando cursei história em Machado/MG: “Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar do menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou da sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.” Com a mente aberta, aqui tudo é berço ou, como disse uma vez, Ariano Suassuna “em volta do precipício tudo é beira”?
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| Casarão zona rural de Ipuiuna/MG - 2008 |
Mormente, o berço da casa grande era de ouro, especialmente
pelas bandas das Geraes. Mesmo que não fosse, literalmente, teria total
condição de estar sobre as maiores riquezas nas entranhas de suas montanhas. Naquela
época, os ativos mais valiosos financeiramente eram as vidas humanas, do
continente africano e seus descentes, escravizadas. Isso parece não chocar uma
boa parte dos sapiens da atualidade.
Mas, para a consideração destes escritos, a proposta é repensar: o berço do
sinhô deu mais caráter que o piso de chão coberto por palhas dos escravizados?
A referência do leito infantil condiciona as cabeças inocentes,
onde sementes de muitas espécies são lançadas por adultos, partindo de seus
conflitos, em um sistema capitalista de origem escravocrata e machista. Não dá
pra negar que o ambiente envolve as nossas primeiras emoções. Preconceitos
velados, mas revelados em lares onde são impactados pela sociedade patriarcal e
de tantos dissabores. Não se pode dizer um bom lugar de aprendizado, para uma
criança, por exemplo, onde presencia sua mãe sofrendo violência (física ou psicológica).
É verídico que, com o seu crescimento e desenvolvimento, pode escolher uma
trajetória diferente, partindo da sua luta constante e de novos relacionamentos.
E tem o lado bom de que as famílias evoluem, mesmo constituídas da forma
tradicional – ou não – trazendo à tona a importância da existência do outro.
Sem enxergar o outro, ficamos sem entender a nós mesmos e de onde viemos. Pode
ser que até no fim da vida renasça um perdão libertador.
Novos conceitos precisam ser desbravados sem perder a prezada
essência: o feminismo, por exemplo, é assunto de homem também. A atuação
feminista não é sexista e não busca impor nenhuma superioridade feminina, mas a
tão sonhada igualdade entre os sexos, em liberdade e espírito. Algumas mulheres
ainda têm medo de conhecer o assunto com profundidade. E não dá para culpa-las
vivendo em uma sociedade feita pelos/para os machos, ou seja, um espaço
comunitário onde ainda se impõe comportamentos que rejeitam o equilíbrio e a
igualdade quanto a direitos e deveres. Isso nunca causaria a perda de
feminilidade, se assim for da vontade de cada mulher, que busca o seu espaço.
Corro o risco de prolongar o tema e estragar o que está por vir. Então sigo.
Diante de um conflito ético, arrisco-me a buscar inspiração na
canção dos compositores Milton Nascimento (“carioca” de Três Pontas) e Fernando
Brant (conterrâneo de Caldas/MG), que entoaram assim: “há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez
que o adulto balança ele vem pra me dar a mão”. E creio que um pouco desse
moleque é “meio a meio”, masculino e feminino. Equilíbrio: para não esfolar o
joelho nas pedras do caminho. Minha mãe dizia que, se eu caísse, "do chão
não passa!” e meu pai, "levanta e começa a marchar para não mais tropeçar”.
O meu Pocinhos revelava nas minhas travessuras infantis muitos dilemas, dúvidas
e confusões. Tenho recordações do que meus pais diziam, mas certamente eu os
observava e isso acabou sendo suficiente para decidir qual caminho trilhar.
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A vontade de ver os seus dias serem melhores é o que impulsiona
e fortalece para fazer as rodas girarem. Mas depende de impor a força adequada
e o equilíbrio. Espero ser entendido ou questionado por tais embaraços
reflexivos. Isso não desqualifica ninguém. Traga argumentos e aprenderemos
muito mais “together and shallow now”.
Pausa para eu ficar só(rir)...
Acredito que a educação dos pais não é conclusiva, mas pode
continuar além vida. Parece absurdo, mas me pego de surpresa em pensamentos
sobre os ensinamentos que ganhei – de graça, com a Graça - do que vi e
presenciei de bons exemplos dos que vivem hoje em plena luz ou dos amigos que
me salvaram de “burrices” mal calculadas, se é que é possível alguma aritmética
nessa situação (o animal burro é inteligente).
Se até aqui você não cansou de ler esse texto imperfeito, talvez
possa dar uma pausa. Depois possa reler se realmente está valendo o seu tempo.
É o que me propus a fazer antes de continuar. Buscar alguns ajustes, refazer as
frases, dar a entonação da narrativa para estabelecer um pensamento efêmero ou
eterno, concomitantemente. Assim também é a educação que vem de berço – ou
poderia ser.
As diversas fases da vida não nos ensinam de forma incólume,
inalterada. Com a interação social e familiar, consegui perceber mais adiante
de um jeito menos prisioneiro de convicções. Livros ajudaram muito. Religião,
sim - e também não. Convivência com os diferentes, principalmente. É aquele
conflito insistente que não se esvai em apenas alguns minutos. Pensar dói.
Muito. E depois, a decepção maior ao ouvir – ou ler – de outros o que antes
defendia – ou só pensava – como verdade sem questionamento. E se você, ou
alguém que ama, busca trazer à luz uma realidade atual, aberta, inclusiva, de
verdadeiro RESPEITO ao que realmente vem do famoso berço, sendo
"apedrejado(a)", é o retrato da frustração. E isso precisa ser
processado (na mente, não na Justiça). Minha forma de ressignificar é persistir
nas questões para que, talvez, algum dia, outros seres viventes não morram
novamente em suas certezas inquestionáveis. Melhor, que ressuscitem
imediatamente!
Recordo da lição do bambu chinês que, primeiramente, cresce pra
baixo. Estrutura sua complexa raiz para, depois de anos, evoluir pra fora, para
o alto, sem deixar a flexibilidade de lado, ou melhor, sabendo que a sua missão
é ser “balançável” (palavra nova) para não se quebrar. Observar os diversos
pontos de vista não impede ninguém de se construir, de se manifestar, de estar
aberto a ouvir o que o outro(a) traz de diferente – ideia, semblante, aura,
forma, cor, sonhos – e crescer a cada dia.
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| Presépio - Praça de Caldas/MG |
(1) Casa-Grande e Senzala, Formação da família brasileira sob o
regime da economia patriarcal, Gilberto Freyre, Círculo do Livro
(2) Diário de Caratinga – 12/09/2016 - Mário Sérgio Cortella
fala sobre ética https://diariodecaratinga.com.br/mario-sergio-cortella.../
(acessado em 22/09/2021)
(3) Qual o significado da sigla LGBTQIA+? | Educa Mais Brasil –
06/10/2020 https://www.educamaisbrasil.com.br/.../qual-o-significado...
(acessado em 22/09/2021)
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