A limitação "de berço"

Por Marcos Almeida

Minha memória pouco se recorda do local em que fui colocado para ninar bem próximo ao Rio Verde, na casa em que morei em Pocinhos do Rio Verde/MG. Contraditoriamente, a emoção dos afetos e afagos perduram além da mente e se eternizam. A inércia dos dias atuais nos envolve em dicotomias e em debates rasos, por se desejar a imposição do “decerto” em detrimento do acolhimento e da complementariedade. Constatar a “lacração” de quem reivindica “ter um berço” (seria de ouro?) está fadado ao desrespeito e torna-se hilário e distorcido. E quem pode forjar a dileta razão (de estar absolutamente certo, na sua visão) somente ao berço?

Júlia e Otávio

Pensemos juntos. De início, “copio e colo” do clássico Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, um trecho magnífico que eu havia sublinhado quando cursei história em Machado/MG: “Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar do menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou da sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.” Com a mente aberta, aqui tudo é berço ou, como disse uma vez, Ariano Suassuna “em volta do precipício tudo é beira”?

Casarão zona rural de Ipuiuna/MG - 2008

O que podemos interpretar do que Freyre relatou? A obra foi escrita na década de 1930. Mas não impede de nos envolver se estamos de corpo (olhos) e alma atentos a um contexto histórico. Em tudo, cada um constrói de forma livre – em tese - seus significados, seus signos, suas defesas e ideias sobre o que vem “de berço”. Não sou diferente e, humildemente, busco algumas correções de rota, aprendizados e inspirações. O professor e filósofo Cortella, em uma de suas entrevistas, afirmou que “se entendermos o ‘berço’ como sendo o início da formação de um ser humano, sem dúvida ali se iniciam as fontes para uma conduta social saudável ou não; contudo, o berço original é apenas uma das condições, pois a liberdade permite que uma pessoa escolha rotas de vida que não deveria.” E aqui há um convite a reflexão que tais rotas não significam necessariamente algo escancarado, ou seja, que a pessoa demonstra em suas ações, sem reservas, mas categoricamente em momentos que os outros não possam julgá-la. Ou ainda, que julgam a seu favor por manifestar-se quando existe uma “plateia” aderente (que pensa igual). A intencionalidade se faz presente de forma consciente ou por impulso do inconsciente (aqui me atrevo a inferir, por não dominar tal ciência).

Mormente, o berço da casa grande era de ouro, especialmente pelas bandas das Geraes. Mesmo que não fosse, literalmente, teria total condição de estar sobre as maiores riquezas nas entranhas de suas montanhas. Naquela época, os ativos mais valiosos financeiramente eram as vidas humanas, do continente africano e seus descentes, escravizadas. Isso parece não chocar uma boa parte dos sapiens da atualidade. Mas, para a consideração destes escritos, a proposta é repensar: o berço do sinhô deu mais caráter que o piso de chão coberto por palhas dos escravizados?

A referência do leito infantil condiciona as cabeças inocentes, onde sementes de muitas espécies são lançadas por adultos, partindo de seus conflitos, em um sistema capitalista de origem escravocrata e machista. Não dá pra negar que o ambiente envolve as nossas primeiras emoções. Preconceitos velados, mas revelados em lares onde são impactados pela sociedade patriarcal e de tantos dissabores. Não se pode dizer um bom lugar de aprendizado, para uma criança, por exemplo, onde presencia sua mãe sofrendo violência (física ou psicológica). É verídico que, com o seu crescimento e desenvolvimento, pode escolher uma trajetória diferente, partindo da sua luta constante e de novos relacionamentos. E tem o lado bom de que as famílias evoluem, mesmo constituídas da forma tradicional – ou não – trazendo à tona a importância da existência do outro. Sem enxergar o outro, ficamos sem entender a nós mesmos e de onde viemos. Pode ser que até no fim da vida renasça um perdão libertador.

Novos conceitos precisam ser desbravados sem perder a prezada essência: o feminismo, por exemplo, é assunto de homem também. A atuação feminista não é sexista e não busca impor nenhuma superioridade feminina, mas a tão sonhada igualdade entre os sexos, em liberdade e espírito. Algumas mulheres ainda têm medo de conhecer o assunto com profundidade. E não dá para culpa-las vivendo em uma sociedade feita pelos/para os machos, ou seja, um espaço comunitário onde ainda se impõe comportamentos que rejeitam o equilíbrio e a igualdade quanto a direitos e deveres. Isso nunca causaria a perda de feminilidade, se assim for da vontade de cada mulher, que busca o seu espaço. Corro o risco de prolongar o tema e estragar o que está por vir. Então sigo.

Diante de um conflito ético, arrisco-me a buscar inspiração na canção dos compositores Milton Nascimento (“carioca” de Três Pontas) e Fernando Brant (conterrâneo de Caldas/MG), que entoaram assim: “há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão”. E creio que um pouco desse moleque é “meio a meio”, masculino e feminino. Equilíbrio: para não esfolar o joelho nas pedras do caminho. Minha mãe dizia que, se eu caísse, "do chão não passa!” e meu pai, "levanta e começa a marchar para não mais tropeçar”. O meu Pocinhos revelava nas minhas travessuras infantis muitos dilemas, dúvidas e confusões. Tenho recordações do que meus pais diziam, mas certamente eu os observava e isso acabou sendo suficiente para decidir qual caminho trilhar.


Hoje tenho a percepção de que não consigo definir quem sou. Espero isso dos meus filhos. Eles dizem o que pensam de mim não com palavras, mas com olhares, sorrisos, e como agem em relação aos nossos semelhantes (eu vendo ou não). A forma como conversam entre si. E a bela composição dos autores do Clube da Esquina continua nos exortando:
“pois não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver. Não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal”.


Coragem, sobretudo, ao tentar ensinar o que nunca aprendi na prática. Como disse anteriormente, em outras palavras, “na teoria, a prática é muito diferente”. Recordo de um momento “de berço” onde eu e minha companheira de vida nos convencemos de que Júlia e Otávio precisavam aprender a pedalar. Ambos desejam isso e com uns 6 e 4 anos, acredito, e as bicicletas estavam disponíveis. Um enorme desafio para mim, pois não tive a oportunidade de aprender tal destreza na minha infância. Foi uma simbiose familiar ver tudo acontecer aos poucos, com tensão e esperança, que encheu de alegria o coração de todos, incluindo avós, tios e amigos. Mas o que isso tem de relação com tudo que estou tentando argumentar? Percebi que para continuar indo adiante é necessário pedalar, mesmo que em alguns momentos somente o chão poderá nos amparar. Então vai! Não para! Agora para, segura, freia! Olha pra longe! Desvia! Volta e chega!

A vontade de ver os seus dias serem melhores é o que impulsiona e fortalece para fazer as rodas girarem. Mas depende de impor a força adequada e o equilíbrio. Espero ser entendido ou questionado por tais embaraços reflexivos. Isso não desqualifica ninguém. Traga argumentos e aprenderemos muito mais “together and shallow now”. Pausa para eu ficar só(rir)...

Acredito que a educação dos pais não é conclusiva, mas pode continuar além vida. Parece absurdo, mas me pego de surpresa em pensamentos sobre os ensinamentos que ganhei – de graça, com a Graça - do que vi e presenciei de bons exemplos dos que vivem hoje em plena luz ou dos amigos que me salvaram de “burrices” mal calculadas, se é que é possível alguma aritmética nessa situação (o animal burro é inteligente).

Se até aqui você não cansou de ler esse texto imperfeito, talvez possa dar uma pausa. Depois possa reler se realmente está valendo o seu tempo. É o que me propus a fazer antes de continuar. Buscar alguns ajustes, refazer as frases, dar a entonação da narrativa para estabelecer um pensamento efêmero ou eterno, concomitantemente. Assim também é a educação que vem de berço – ou poderia ser.

As diversas fases da vida não nos ensinam de forma incólume, inalterada. Com a interação social e familiar, consegui perceber mais adiante de um jeito menos prisioneiro de convicções. Livros ajudaram muito. Religião, sim - e também não. Convivência com os diferentes, principalmente. É aquele conflito insistente que não se esvai em apenas alguns minutos. Pensar dói. Muito. E depois, a decepção maior ao ouvir – ou ler – de outros o que antes defendia – ou só pensava – como verdade sem questionamento. E se você, ou alguém que ama, busca trazer à luz uma realidade atual, aberta, inclusiva, de verdadeiro RESPEITO ao que realmente vem do famoso berço, sendo "apedrejado(a)", é o retrato da frustração. E isso precisa ser processado (na mente, não na Justiça). Minha forma de ressignificar é persistir nas questões para que, talvez, algum dia, outros seres viventes não morram novamente em suas certezas inquestionáveis. Melhor, que ressuscitem imediatamente!

Recordo da lição do bambu chinês que, primeiramente, cresce pra baixo. Estrutura sua complexa raiz para, depois de anos, evoluir pra fora, para o alto, sem deixar a flexibilidade de lado, ou melhor, sabendo que a sua missão é ser “balançável” (palavra nova) para não se quebrar. Observar os diversos pontos de vista não impede ninguém de se construir, de se manifestar, de estar aberto a ouvir o que o outro(a) traz de diferente – ideia, semblante, aura, forma, cor, sonhos – e crescer a cada dia.

Presépio - Praça de Caldas/MG

Por que buscamos adesões por curtidas e comentários favoráveis em nossos “mil e dois” perfis, sobre nossos relacionamentos e atividades, que traduzem quase nada do que somos e pensamos? Alguns buscam o reconhecimento com palavras bonitas, fotos de efeito, para conquistar comentários afáveis. Se há um "embate" argumentativo e aberto ao diálogo, porque não ler antes de responder? Começamos, mas, tantas vezes, não sabemos como terminar algumas das nossas imbecilidades. E realmente despedaçamos o que, na realidade, deveria vir do leito de ninar semelhante a uma manjedoura (tabuleiro em que se deposita comida para vacas, cavalos, etc. em estábulos), em um lugar simples – até impróprio para dar à luz – e próximo aos animais que só observam. Sim, parecido com o Presépio, um símbolo de muita essência para os cristãos, que nos exorta a nos humilharmos ao demonstrar que, de onde saímos, não é melhor do que nenhum outro, mesmo que do pobre, do preto, do nordestino, do LGBTQIA+. Não está escrito assim no Evangelho, mas na Vida dAquele que mais ouvia do que falava (desenhava no chão de terra batida), mais perguntava do que respondia, sofria ao ver as mazelas dos excluídos, sem voz e sem vez, cegos, paralíticos, sem-berço (hoje, sem-terra, sem-teto). Debatia com os hipócritas opinativos que impunham a última sentença (hoje palavras). Ele nos ensinou na prática que vale mais ter a EDUCAÇÃO e o RESPEITO “de Manjedoura” do que a “de berço”!

(1) Casa-Grande e Senzala, Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, Gilberto Freyre, Círculo do Livro

(2) Diário de Caratinga – 12/09/2016 - Mário Sérgio Cortella fala sobre ética https://diariodecaratinga.com.br/mario-sergio-cortella.../ (acessado em 22/09/2021)

(3) Qual o significado da sigla LGBTQIA+? | Educa Mais Brasil – 06/10/2020 https://www.educamaisbrasil.com.br/.../qual-o-significado... (acessado em 22/09/2021)

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