Caixa de retratos

Por Marcos Almeida

Desde muito pequeno gostei de ver retratos. Sempre foi uma emoção vasculhar as fotos deixadas numa caixa que ficava bem guardada em algum armário da casa. Para ter acesso, era necessário pedir para um adulto poder acompanhar. Sentar no sofá da sala com alguém querido para observar cada detalhe daquelas lembranças, especialmente pessoas registradas em branco e preto, em cenas inesquecíveis, como as de algumas bodas, de festas, de famílias, turma de catecismo, encontros de amigos, sempre em poses solenes ou descontraídas para cada momento. Isso tudo, de um tempo, século passado, fim do segundo milênio da era cristã.

Turma Catequese Caldas (1974)

Falando no Mestre, por entre as relíquias de antepassados, surgem algumas lembrancinhas, conhecidas como “santinhos”, amarelados pelo tempo com o cuidado da guarda pelas mães zelosas e piedosas. Dos que mais me recordo, santo Antônio e santa Bárbara, considerados protetores das tragédias da solidão e dos fenômenos da natureza. Por vezes, o medo de não encontrar a pessoa amada nessa vida poderia ser o raio mais potente que ameaçaria os que deixassem de orar piedosamente.

Voltando para os registros fotográficos, pode-se imaginar também os sofrimentos não evitados pelos santos. O que cada olhar pode delatar? Um casal que se espantou e sorriu para as peripécias do retratista? A criança obrigada a se produzir para deixar ser capturada por um estranho, abduzida por um ET? Ou a família, com pai, em uma cadeira imponente, fazendo pose do mais importante da chapa, com a mãe em pé e um tanto encurvada com o caçula no colo e o restante da prole enfileirada cada qual com a cara amarrada e sofrida?

Minha mãe Ivete, Vó Sabina e Tio Wander

De repente, ao vasculhar algumas peças fora do padrão, propositadamente rasgadas ou "tesouradas", eliminando alguma figura indesejada, talvez intrusa naquele registro, ou que possa ter criado alguma ojeriza ou malquerença por algumas desconversas ou bestialidades, era o estratagema dos voluntariosos e certos de estarem com a razão. O tal cancelamento daqueles anos. Porém, parte da obra era mantida com a figura dos que ainda eram amados, mormente para reafirmar que alguém fora um desafeto.

Uma vez, enquanto "modelo" fotográfico, percebi observando-me, após vários anos, que o melhor que pude oferecer foi quando não me percebi sendo registrado. Olhar distante, distraído por algum brinquedo, brincando feliz. Ou, ainda, abrindo a torneira do jardim, vendo a bica d’água escorrendo por entre algumas margaridas no jardim. Mesmo com alguma lágrima nos olhos pela aporrinhação de ter que colocar a melhor roupa para o evento, fui para o negativo de um jeito mais positivo, sendo revelado e mantido pelo tempo inadvertido, sendo autoproclamado rei da história. Narciso me deixaria mais que à vontade, mesmo estando nítido o furo no meu sapato pelos tropeços da meninice pelas tantas brincadeiras pela rua de terra e um tanto empedrada.

Um LP do Paulo Sérgio também servia como adorno para a descontração ao mirar a máquina de um parente moderno e ousado; ou o programa Silvio Santos exibido por um TV Telefunken dos anos 1970, que servia de fundo para o cenário. Seria o início do fim do fotógrafo de profissão – o retratista. Um quase Deus naquelas paragens bucólicas. Testemunha convocada a estar presente no máximo de lugares em quase todos os momentos.

Retrato atribuído ao retratista Oséas - Caldas/MG

Com o passar da vida, deixamos um pouco de lado os retratos soltos e passamos a organizar memórias em álbuns; depois, vieram as filmagens VHS, paralelamente aos registros em fotos instantâneas, talvez, a precursora da digital. Daí, pude, além de ver, ouvir os momentos de alegria, ver os filhos crescerem e os pais envelhecerem em seus mais envolventes movimentos. O beijo na esposa no altar da Matriz; ouvir o sim que depois foi convertido para o DVD, posteriormente para o HD e agora está em alguma nuvem. Nesse caso, melhor que não chova.

Olhar com atenção, em qualquer mídia, quem foi gravado percebe o sentimento que se espalhou com o registro que há de ter um significado. Mas, para quem não viveu a cena, pode estar enxergando apenas um momento inerte ou disperso. Por vezes, quem se vê no espelho não consegue entender o que se apresenta ao vivo, por ser impossível remover os filtros e as máscaras. Ver-se no passado, sépia ou colorido, estático ou em câmera lenta, mudo ou retumbante, o que te emociona?

A fotografia que hoje tenta matar a saudade de um tempo, de uma convivência, de um afeto, foi o momento possível de ser eternizado para os olhos, mas antes, no coração. Daí percebi que muitos dos que amei ficaram em muitos retratos. Muito mais, em minha mente e em meu coração.

Saudoso primo Luiz Carlos e eu, desfile 07/09/1976 ou 77

Quando alguém falece, suas recordações são urgentemente divididas para ocuparem algum álbum ou servir de marca página de algum livro. O triste é quando não se reconhece mais ninguém pela ausência física daquele ou daquela que mediava através dos belos causos de antigamente. Mas vale relembrar ou reinventar o que ficou de cor, de coração. O legado, o bastão, agora, foi repassado para que seja ressignificado, com o simples aprendizado de que a beleza do que é registrado, aqui e agora, também estará cercado de emoção.

E, por aí, tentando relembrar algo de valioso vivido, ressurgem os encontros, mesmo que nestas modernidades de plataformas, que ainda podemos continuar proseando sobre algum retrato.

Mas, aquela caixa de retratos, ficou vazia...


Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Lindas lembranças. Parabéns pelo trabalho.

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    1. Obrigado, cara Maria Elza! É uma alegria contar com você como leitora e espero que continue acompanhando as publicações! Abraço

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