Demolição precoce

Por Marcos Almeida

Maria Aparecida da Silva e José Cândido da Silva

Escrevendo e jogando com as palavras sobre as cenas vívidas na memória, espero não estar sendo arrogante em trazer alguns temas envolvendo os retratos que tenho em minha guarda. Alguns, estão intactos fisicamente e, tantos outros, em arquivos digitais, podendo ter sido capturados originalmente neste formado ou escaneados. Tais objetos de recordação trazem certamente, não só para mim, mas para cada pessoa observadora, algo que toca a emoção. É como um relacionamento passional em que se torna impossível separar o sentimento da realidade, especialmente pela perspectiva que cada ser carrega consigo, inúmeras visões de mundo e valores.

Casario da Praça da Matriz - Caldas/MG - 2013

Por incontáveis vezes, me deparei observando detalhes de uma representação estática de um tempo que não volta mais. A saudade invade a alma, na tristeza de algo ou alguém não existir mais ou na alegria de ter vivido emoções fantásticas onde sinto que podem ser tocadas. Quem não se lembra de uma grande casa antiga na praça de Caldas/MG, que fora residência da família D’Ambrósio e que também recebeu inúmeros casais para enlaces matrimoniais perante um juiz de paz e registros de nascimento quando a procriação era exigência religiosa?

Não só desse belo exemplar das primeiras construções da minha querida terra natal, mas muitas outras, foram substituídas por prédios e sobrados modernos. Nem todas, pois alguns terrenos continuam vazios, após demolição provavelmente precoce de parte da nossa história. Mas não cabe a mim julgar cada decisão, pois a parte mais sensível do corpo humano, segundo alguns filósofos, é o bolso (ou a conta bancária ou os ativos digitais, como as criptomoedas). Seria um tanto irracional pensando que inúmeros visitantes se deslocam para conhecer a arquitetura de cidades históricas ou seus bairros e distritos, que preservaram suas casas coloniais estruturadas com paredes de taipa de pilão ou pau a pique ou tijolões, mantendo suas varanda, colunas e beirais. E também, os seus quintais.

Certa vez, ouvi de uma amiga que seu neto de poucos anos de vida, que olhou para um desses prédios comerciais que estão sendo construídos e, na sua pequena sabedoria, disse:

- Ali está sendo construído um presídio, vó?

Tudo o que vivi na minha infância me proporcionou reflexão. Lá, e ainda ontem, pude adentrar em algumas casas que mantinham as portas abertas de tanta confiança e paz. Pisar nas tábuas largas que balançavam com uma simples caminhada e o cheiro do vento que subia pelas frestas do assoalho vindo do porão. Chegando à cozinha, fogão à lenha acesso com uma chaleira e um caldeirão para aproveitar o fogo brando, mas que com madeira seca, aumentava as labaredas, para apressar a refeição com aquele sabor inigualável. Pena não lembrar cada detalhe, mas me recordo de várias moradias antigas nas ruas Senador Bueno de Paiva e Duque de Caxias, além das existentes na praça principal.

Na roça, no bairro da Pedra Branca, construção de pau a pique antiga que pertenceram aos pais do meu avô, também nos acolhia com o piso de chão vermelho e um grande fogão ao centro, com chapa quente esperando fritar um queijo curado que só seria retirado após fazer aquela casquinha. A goiabada ou a laranjada de corte ficava esperando ansiosamente para equilibrar sal e doce. Tudo feito carinhosamente pela minha avó Cida, patroa do Zé Cândido. Ela tinha uma mão de fada para a cozinha e sempre carinhosa em apresentar suas iguarias para filhos e netos.

Certa vez, fiquei por uns dias no sítio somente com meus avós. Dona Cida fazia aquela jantinha que todos amavam. E a conversa e os causos, enquanto tudo era preparado, arroz, feijão, batata e abobrinha refogada com farinha de milho. Ainda dá água na boca. E, terminando, a refeição, meu avô logo pedia sua água fervente para se lavar na bacia. Banho tomando, se ajeitava no colchão de palha – e como puxava a palha (um ronco trovejante)!

A conversa se estendia entre avó e neto. E o tempo passou com uma velocidade impensável.

Casarão na Pedra Branca - Família Braga

Voltar para a cidade era outra aventura, especialmente com meu avô no volante de um fusca entupido de badulaques. Tudo se ajeitava e nos acomodávamos sentando sobre os travesseiros e cobertores para ceder espaço em baixo do capô às outras tralhas. Do alto da estrada avistava-se um casarão antigo, da família Braga e, algumas vacas, impediam o motorista de seguir o caminho na toada de costume, precisando engatar o ponto morto. Era a vez de dona Cida sair e espantar a criação e Zé Cândido, fazia a sua parte: buzinava. Eu ria, porque estava no banco de trás e só conseguiria sair se fossem retirados todos os objetos que me acompanhavam.  E tudo dava certo. Mas, ainda, porteira para abrir e fechar, pois o mata-burro era um luxo naqueles tempos.

Porta de duas folhas com acessório 
para liberar a fechadura por fora.

Todo esse afeto no interior das Geraes, adentrando em lares acolhedores, ainda que com tanta imperfeição, traz à tona minhas inquietudes com um jeito “modernoso” de enxergar as coisas. São tantos pensando em demolir sem planejar o depois; outros envidraçando tudo, abrindo espaço para a luz entrar, mas com dificuldade para manter os vidros translúcidos pela fumaça e fuligem de queimadas, encortinando do teto ao piso, finalmente, para esconder o que já não pode ser compartilhado; as portas enormes de madeira recolheram as cordinhas que facilitavam a sua abertura pelo lado de fora, atualmente incrementada com uma fechadura com chave tetra; tramelas e ferrolhos substituídos por outras trancas e acompanhadas por alarmes e sensores de presença (maior tempo, de ausência). 

Mas tudo isso, não falo de construções físicas, mas de emaranhados conflitivos que abalam nossas mentes.

Casa família D'Ambrósio - Antigo Cartório Civil - 2013



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