Encontros em diversas praças

Memórias sobre a Pastoral da Juventude de Caldas/MG – Década de 1980

Por Marcos Almeida, 30/09/2021
Pela praça central de Caldas que, se não estou enganado, dos fundos das duas igrejas que a delimita, a matriz e a do Rosário, há uma distância em torno de quinhentos metros. Todo o conjunto urbanístico era entrecortado por cinco travessas; hoje apenas duas. Foram criadas de lá para cá, o largo do Rosário, entre o coreto e a igreja que praticamente se contorna rumo à Pocinhos e o largo da matriz. Não sei se foi nesta ordem, mas também foram ajuntadas as calçadas em frente ao tradicional bar São João. Outras edificações sempre chamaram a minha atenção: o Cine Caldas, o hotel Serrano (agência do Banco do Brasil), os casarões da Dona Luzia (agência da CAIXA), do Miguel DÁmbrósio (cartório), do Sr. Joaquim Cristiano e da dona Zezé Dias (triste de ver como está aquele local hoje em dia). Portanto, a grande praça era o espaço em que várias gerações viveram da sua infância à velhice, testemunha da efervescência da adolescência e juventude que agora tentarei compartilhar alguns momentos de um certo saudosismo.
Quem ouviu falar em que “dar a volta” pela praça e a ousadia de troca de olhares entre potenciais “paqueras”, seria “fazer a avenida”? Carrinho de pipoca e o Cine Caldas iluminado e movimentado – recordo-me também da sua decadência – complementavam o ambiente com os bares que trocavam de nome com a mudança das expectativas das “tribos” que surgiam: BatuCaldas, Degrau, Ball, Porão da Fumaça, ou seja, uma infinidade de nomes criativos.
A aglomeração de pessoas nesta parte central da cidade era certa pelas festas da Uva, pelos bailes no Palácio da Uva, com artistas e grupos renomados, cada qual ao seu tempo: Vanuza, Martinha, Altemar Dutra, Francisco Petrônio, Chitãozinho e Xororó, XIV Bis, Placa Luminosa, Banda do Brejo, Jair Supercap e outros tantos que, cada caldense, ainda tem o seu preferido ou a sua recordação.

Renata, Bebeto, Marcos Ferraz, Rozângela,
Marcos Almeida, Roberto, Zé Coco e Ermelindo

Tudo isso permeava a ânsia em viver cada fase com a alegria de realizar algo que ficasse no coração, o que propiciava encontros maravilhosos, que quero ressaltar nestas linhas, da juventude católica, que gerou imenso significado para quem entrou de corpo e alma em cada projeto, grupo ou pastoral. Nas palavras de Alselm Grum, “os encontros modificam as pessoas e a verdadeira proximidade que deles resulta lhes confere uma largueza maior. E eles também transformam o mundo, tornam-no mais iluminado.”
Destaco a marcante fase da Pastoral da Juventude na paróquia Nossa Senhora do Patrocínio nos anos 1980, com o incentivo do saudoso amigo Padre Poggetto. No cenário nacional, era a fase mais forte do Rock & Roll e da transição da ditadura militar – que parecia estar longe dos biscoiteiros – para a democracia, passando pelas Diretas Já e pela Assembleia Constituinte (1987) que elaborou a nossa Carta Magna (neste momento, tem sofrido diversas ameaças) promulgada em 05/10/1988. Mas a vontade de entregar-se ao serviço do Evangelho para partilhar com outros jovens das comunidades, envolvendo o público juvenil do centro, Santa Cruz, bairro das Casinhas e bairros rurais, era o que gerava a nossa força e reconhecimento.
Através da metodologia claramente sistematizada pelo padre Jorge Boran em seu livro “Juventude, o grande desafio” (Edições Paulinas, 1985), reforçava a importância da formação dos jovens em uma visão do processo histórico, retomando o método Ver-Julgar-Agir, “oriundo da Ação Católica, criado pelo Cardeal Josef Cardijn, na década de 1950, na Bélgica, onde exercia seu ministério pastoral entre os trabalhadores” e, com isso, buscava ainda estimular a consciência crítica e a dialética. Hoje, muitos que tocarem nesse alfarrábio, o tacharão de comunista. O padre Boran afirmou em 1982 que “os jovens expressam grande vontade de participar. Não aceitam uma sociedade dividida em classes, onde o mais forte avança às custas dos mais francos, onde os privilégios de alguns são mantidos por um sistema de corrupção, mentira, força, competição, aparências, egoísmo, violência e tortura.” Será que escreveu para os dias atuais?
Foto 1 - Grupo de Jovens Caldas no Pré-Seminário
O grupo de base, ou seja, de poucos membros, era o fio condutor de todo o conceito de seu estudo para gerar a verdadeira participação e, não somente, presença. As reuniões eram preparadas com diversos fatos para serem debatidos de interesse dos jovens da época, buscando conhecer as causas e consequências, por exemplo, das problemáticas do cotidiano (VER); silenciar os corações e mentes diante de Deus e ouvir a sua Palavra (JULGAR); por fim, planejar ações concretas e incentivar as mudanças de comportamentos da juventude começando pelos membros do grupo (AGIR). E assim começamos a nos encontrar semanalmente em uma pequena sala na Galeria Paroquial (COPAS), construção marcante da praça central, próximo à igreja matriz. Em frente, a famosa estátua, com o busto do ex-prefeito Uriel Alvim. Lá, sentávamos para conversar e cantar em momentos de descontração. Violões e vozes, canções das mais variadas que, em algumas ocasiões, provocavam os que outrora defenderam os militares no poder: “Vem vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora não espera acontecer” (Geraldo Vandré). Nós víamos a esperança para o nosso País que começava a superar a falta de liberdade de expressão, apesar da mínima restrição em nossa cidade, a não ser pelo preconceito de ser jovem, pobre e “sem nome”. Mas nosso presente se transformava em futuro de forma urgente.
Sob a luz das parábolas encontradas na Bíblia, apresentando as mensagens e atitudes de Jesus, tomávamos consciência da história do povo de Deus que caminhou pelo deserto e também desenvolvemos pequenos trabalhos voltados a solidariedade. Buscávamos o equilíbrio entre FÉ e VIDA em momentos de intimidade com o Jesus Eucarístico, na capela do Santíssimo Sacramento que nos acolhia para refletirmos, cantarmos e elevar nossas preces ao Altíssimo. A espiritualidade aliada à ação nos impulsionava a conviver com as pessoas marginalizadas das periferias principalmente nos momentos da novena de Natal. Tudo fazia sentido e a paz invadia cada coração com sede de Deus!
Diante da importância em não nos fecharmos, buscando interação com outras pessoas, organizamos alguns Encontros de Jovens com maior número de participantes. Conseguimos envolver a juventude que também participava de grupos católicos das cidades vizinhas: Santa Rita de Caldas, Ibitiura de Minas, Ipuiuna e Andradas. Colocávamos toda nossa energia para que todos os inscritos ficassem satisfeitos com a experiência. Era necessário o envolvimento de uma equipe de liderança, com a divisão de tarefas, desde a faxina até as palestras. O local mais marcante dos nossos encontros foi o Pré-seminário em Caldas, um prédio bem antigo situado no bairro Santa Cruz. Cada evento fazia aumentar o compromisso de muitos em levar mais esperança a outros jovens, famílias e comunidades. No mínimo, mais amizade e afeto. Mas, também, alguns namoros que levaram a novas famílias.
Falar que tudo dava certo seria a mais pura inverdade. Discussões, palavras proclamadas de forma incorreta, “tapa na mesa”, liderança que não ouvia, fofocas, rixas e tantos outros problemas naturais de um mundo em construção. Mas, aos poucos, tudo se ajeitava e a beleza da PJ, como gostávamos de dizer, continuava a produzir frutos. Havia até uma certa rotatividade dos membros dos grupos no início, mas quando conseguimos criar um laço de irmandade, praticamente ninguém deixou de frequentar as atividades decididas em consenso.
Por alguns anos, normalmente no mês de setembro, realizávamos a Semana da Juventude, com uma programação intensa: peças teatrais, concursos de poesia e desenho, jogos, palestras, serestas, encontrões, bailes, etc. Buscávamos patrocínio no comércio local para cobrir as despesas e fazíamos a divulgação em cartazes confeccionados pela Gráfica Ottoni. A negociação também visava conseguir um desconto no material solicitado. A coordenação produzia jornalzinho com a ajuda do mimeógrafo da paróquia, bem como as famosas folhas de músicas (cantos para os íntimos). Uma delas, “Ei você que tem de oito a oitenta anos, não fique aí perdido como ave sem destino” (Como diria Dylan, Zé Geraldo). Para quem não acreditava em milagres era só começar esse trabalho e ver o que o álcool fazia com a tinta de uma folha matriz previamente datilografada cuidadosamente. As últimas folhas impressas praticamente se tornavam ilegíveis diante da necessidade de reprodução suficiente para cada jovem participante do encontrão (óculos para que te quero, com um azul claro quase branco).
“Bom dia, Juventude!” Expressão que era de responsabilidade do grupo de animação de todo início de encontro. E se a resposta fosse sem energia, nova saudação era proclamada com a expectativa de uma resposta mais convincente que o momento era de alegria. Aí, sim, recebíamos de volta: “BOM DIA!” Até hoje utilizo essa forma de saudar para não me esquecer de minha origem.
Foto 2 - Encontro de Jovens no Pré-Seminário - 1987
A sinergia que impactava a todos proporcionou a realização alguns grandes encontros sob o imenso céu de Deus. Tentávamos descobrir o que poderia inspirar além do ordinário e convidávamos outros amigos que não participavam das reuniões semanais. Buscávamos o extraordinário, o local mais marcante, a Pedra Branca, o ponto de maior altitude do município! A juventude do bairro de mesmo nome nos guiava pelas trilhas, de subida forte e de retorno escorregadio. Conseguíamos a adesão de um padre da PJ da Diocese de Pouso Alegre para celebrar a missa no alto da serra, sobre a pedra maciça de granito que, aos seus pés, naquela época, começava a ser minerada. Hoje, infelizmente, olhamos e vemos tamanha ferida gerada. O grupo de jovens da PJ se envolveu no trabalho de combater o início da exploração e percebemos o poder do dinheiro, das falácias e das promessas de melhorias para a nossa gente. Mas essa história, todos conhecem. Ainda bem que ocorreram avanços da legislação e da luta mais recente, com a vinda de novas gerações e forças para o nosso município, apesar da ferida ainda estar exposta em nosso Santuário de Fé e Vida.
A luta que não para – e não tem como parar – também me faz recordar de uma famosa frase que era impactante naquela década: “Caldas dá urânio para o Brasil!” Os poucos carros, comparado aos dias de hoje, recebiam os adesivos com tal menção e um desenho do símbolo do átomo, além afixar também nos vidros das casas e do comércio, trazendo a falsa esperança que isso iria mudar as finanças do erário público. A mina exauriu. Estudantes e professores, autoridades e população, lotavam o ônibus da antiga Nuclebras / INB para conhecer a mina e as instalações, com direito a almoço grátis (já dizia o filósofo da economia, “almoço grátis não existe”). Outras batalhas o povo da minha amada cidade enfrentou e, talvez, prejudicadas pelo pouco juízo de algumas figuras que continuavam “lavando as mãos”. E sabemos muito bem agora que não foi pouca coisa - rejeito radioativo (lixo nuclear) – que também veio de fora do nosso município para ser depositado no território caldense.
A PJ de Caldas não se limitou às questões religiosas e problemas locais. Um fato marcante foi a posição firmada contra o então candidato a presidência, Fernando Collor de Melo, famoso por ser caçador de marajás no estado de Alagoas, com forte repercussão da mídia, que se tornou o primeiro presidente eleito pelo povo após a ditadura. Geramos polêmica, pois, pensavam muitos, que deveríamos estar rezando sem nos envolvermos com temas mundanos. A nossa luta incluía o combate ao analfabetismo político e percebíamos a narrativa do projeto econômico voltado para beneficiar as elites. A nossa consciência crítica começou pelas nossas discussões nos grupos de base, bem como pela interação com membros das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e da Pastoral da Terra da diocese de Pouso Alegre, leigos, religiosos e sacerdotes. Nunca vou esquecer-me que “somos gente nova vivendo a união, somos povo semente de nova nação” (Baião das Comunidades de autoria de Zé Vicente).
Depois, o Brasil viu a juventude, especialmente os estudantes nas capitais dos estados, caras pintadas, com o objetivo do Impeachment, do basta. Mas Collor renunciou antes de se iniciar a sessão que o julgaria. Como ele vive hoje?...
Cada pessoa, amigo próximo ou distante, que mora perto ou que mora longe, que participou de pelo menos uma celebração, ou um encontro, ou ainda uma simples atividade da Pastoral da Juventude, provavelmente teve sua vida marcada de forma positiva. Foram tantos amigos e amigas. Cada um sabe o que viveu. Por isso, não citei nenhum membro, coordenador, participante, ouvinte, permanente ou esporádico, por não ter a capacidade de lembrar de todos neste momento. A minha recordação vem por outros momentos que vivi e o aprendizado que carrego no meu coração que os outros trouxeram. O tempo correu ligeiro e mais de trinta anos depois desse tempo de vida fantástico. Cada um sabe que em cada momento houve a intensidade da busca e da entrega do afeto. Deus fez de nós instrumentos para sermos menos egoístas, mais realistas, pais, mães, filhos, irmãos com limitações e emoções, pulsantes, sorridentes e ainda esperançosos, sem esquecer do que há por vir, existir. A certeza que continuamos fazendo as nossas escolhas e a criticidade desenvolvida com a vivência de uma época única!
Paz e bem!
Fotos:
1 - Coordenação da PJ Caldas - 1986 - Ano da eleição para a Assembleia Constituinte
2 - Grupo de Jovens - 1989
3 - Encontro de Jovens de Caldas - Pré-seminário
4 - Subida à Pedra Branca - PJ Caldas
Foto 3 - Zé Coco, Marcos Almeida, Aline e Afonso Bernardes

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