As faces de um retrato


Por Marcos Almeida

Cada passo que damos em direção ao futuro deixa a sua marca. Mas não duvido que esse movimento nos dá a sensação de que vamos adiante e voltamos inconscientemente para o que vivenciamos, especialmente da infância até a juventude. Certo alguém, que ainda tem uma curta existência, pode até odiar o se convencionou a chamar de saudosismo. Por aqui, deduzo como saudade que traz de volta uma recordação. Quando nos deparamos com retratos antigos esquecidos no fundo de uma gaveta, em envelopes pardos, ou ainda, afixados em álbuns, recordamos de fantasias e de muitas faces.

Dar o significado para quem se encanta com feições de crianças e adultos de uma época antiga, com trajes pouco convencionais para os nossos dias, à frente de uma casa ou de um parque que muito se modificaram, e que investe um momento esquecendo-se das publicações frenéticas que rolam pelas nossas telas, traz um sentido poético fora do comum.

Talvez, tudo isso não passe de uma miragem: uma morada branca, com um alpendre, porta e “vitrô” e escadas para chegar até a sala. A rua de terra, o muro da mesma cor e alguns arbustos a enfeitar o jardim. Detalhes em pedras na fachada para, quiçá, desviar nossa atenção de um casal apaixonado. Ele beijando o rosto feliz da sua esposa. Isso, autorizado pelo senhor à frente, que raramente ria (difícil saber a razão), posou com um semblante acolhedor e de paz ao lado da sua cara-metade de tantos anos de luta. Adolescentes e crianças, que procuravam seguir a moda do vermelho e branco ou talvez por não existir muitas opções, acaba nos deixando em dúvida. Para os dois meninos menores, na inocência, prevalecia o abraço que por agora tende a ser reprimido. Tudo isso, em uma residência da Rua D’Ambrósio, em Pocinhos do Rio Verde, um cantinho maravilhoso do Sul de Minas Gerais.

Zé do Correio e Ivete;
Zé Cândido, Dona Cida, Arlete, Nilton e Maria Alice D'Ambrósio;
Paulo (Bola) D'Ambrósio e Marcos Almeida. 
Casa da Rua D'Ambrósio

O que não se via por dentro da casa? O pai corinthiano que trabalhava nos Correios; a mãe que educava o filho e cuidava da casa; a criança que vivia no quintal ou na rua com seu amigo “Bola”, observando sabiás, subindo em árvores, jogando bola-de-gude...

Observe a cena de qualquer outro retrato, recente ou antigo, somente na imaginação e sem medo de ser reprimido, e tente interpretar os olhares que fitavam o “passarinho” proclamado pelo retratista. Sairia um “bem-te-vi” por detrás de uma câmera? Mesmo assim, fisionomias distantes, alguns sisudos e outros extravagantes. Sem regras e tantas surpresas.

Acontece que, um ser alado pode nos iludir em uma captura fotográfica, mas o ato de registrar uma ocasião, por exemplo, de um simples caminhar, evidencia mudanças do meio ao qual o protagonista vivenciou. Por quantas vezes, olhamos para as fotos antigas e não vemos, no mesmo cenário, uma construção ou um símbolo?

Reflexão: o todo que não vemos...

A realidade tão diferente, sinal que, passo a passo, a face que um dia sonhou pode estar se enamorando por outros lugares, deixando a sequência da marcha para outros que o sucedem.

Encantar pela beleza de um passado, abandonando diversos sentimentos que envolvem nossa alma, desencadeará na exploração de um instante revelado de forma imperfeita. A facilidade de registrar momentos acabou reduzindo nossa capacidade de olhar vastamente para o cenário como um todo. Talvez, nem percebamos que conhecemos um certo local em que um grupo de adolescentes e crianças, em uma década distante do imaginário, se enfileiraram sentados sobre a grama para eternizar os seus semblantes e suas emoções. Pode ser o território que se levam filhos e netos para brincar por ainda diversas décadas. Porém, antes, a cena apresentava praticamente um gramado com algumas árvores, uns pinheiros, caminho sem asfalto e ao fundo, um hotel majestoso que já foi demolido.

Foto no parque do Balneário - Pocinhos do Rio Verde/MG
Anos 1970

Parece que os retratos foram inventados para confirmar a nossa falta de resiliência em manter o que outras gerações construíram ou em passar rapidamente pelas imagens compartilhadas sem o menor constrangimento com o nosso próprio interior. Mas, não cabe pra nós o julgamento, somente o questionamento. Ou, sejamos corajosos em olhar para as nossas antigas fotografias 3x4 e relembrar o que pensávamos, os desejos que sucumbiram, a nossa alegria e vontade de fazer amigos de verdade. Será possível ampliar e amplificar tais figuras e reinventar os sonhos, sendo cativado pela própria face que delata aquele modesto olhar?

*****

COMENTE e COMPARTILHE O LINK DESSA PUBLICAÇÃO!
AJUDE A DIVULGAR E SUGIRA NOVOS TEMAS!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mais do que ver, que eu possa visitar!

Caixa de retratos

Zé do Correio, um pai extraordinário!