Brandão e o vinho amargo!
Por Marcos Almeida
| Prof. Brandão - Rosa dos Ventos - 2007 |
Assuntar sobre vinho em Caldas não é de hoje. Segundo alguns escritos que tenho arquivado nos “meus guardados” dos tempos de juventude, o tema da vitivinicultura começou a rondar o município por volta dos anos 1880/1890. Quem percorre o famoso “morro do cemitério” pode até não saber, mas traz em seu logradouro uma homenagem ao padre Joaquim Ferreira d’Assumpção, que trouxe melhorias para o cultivo da videira, quando assumiu a paróquia, em função de sua nacionalidade portuguesa.
| Brandão e Marcos Rosa dos Ventos - 2008 |
Dando um pulo no tempo, a minha intenção, neste contexto, é rememorar um pouco dos primeiros passos no vale da Pedra Branca do grande amigo, Carlos Rodrigues Brandão, ou simplesmente, Brandão, um carioca que viveu e trabalhou muito tempo em Campinas/SP (mas também por todo o Brasil e exterior), psicólogo, antropólogo, professor, escritor, um ser humano que sabia como abraçar as pessoas a partir do seu sorriso ou pelas palavras escritas que tanto aprendemos a saborear.
Parece presunção deste simples “escrevinhador” querer contar
um pouco sobre uma figura emblemática e carismática para pessoas de sua
convivência próxima. Mas, aqui, a intenção é buscar no fundo do baú sentimental
algumas memórias. Aquelas, do tipo pré-histórica, ou ainda, de um
relacionamento de amizade e admiração.
| Renata, Regina Helena, Rozângela e Silvana Gilmar, Marcos e Leto Grupo de Jovens - 1986/1987 |
A primeira recordação que tenho desse mestre da simpatia foi quando se aproximou de mim e de outros amigos da Pastoral da Juventude, lá pelos anos 1988/89 quando estávamos em um banco da praça, próximo ao coreto (igreja do Rosário). Como um bom carioca, começou a puxar conversa, como se fosse simplesmente um turista. Ele se apresentou como alguém que estava ficando alguns dias em uma casinha em Pocinhos (do Marcos do Ipê) e que pouco conhecia da cidade. Que veio interessado em conhecer mais sobre a cultura da uva e produção de vinho. Até poderíamos pensar que se tratava de um “bon vivant”, com aquele estilo sorridente e de olhar marcante e, ainda bem, que não era tão disseminada aquela orientação para os mais jovens do “não converse com pessoas estranhas”. Papeamos por mais de uma hora nessa ocasião. Nosso novo conhecido procurava saber mais detalhes do que fazíamos em nossa pacata cidade, questionou como era a nossa atuação na comunidade e estabeleceu um “rapport” quando nos disse que havia participado de alguns grupos da Comissão Pastoral da Terra – CPT, se não estou enganado, em Goiás ou Mato Grosso. Dava pra perceber que era um cara “gente boa”!
| Otávio, Brandão e Júlia Rosa dos Ventos - 2008 |
Daí, começamos a nos encontrar mais amiúde. Ele participou de um passeio que fizemos em grupo em alguma serra, como era de costume no nosso grupo de jovens. Conheceu e se aproximou do meu xará e amigo Marcos Ferraz e, posteriormente, do seu irmão, Paulo Ferraz, que naquela época produzia um vinho rosé de excelente qualidade, em pequena quantidade e de forma artesanal, cujo rotulo tenho na lembrança com o nome de “Bouquet”. Realmente, um perfume marcante com sabor inigualável em minhas papilas gustativas. Tudo isso, abriu portas para ele se enturmar com mais pessoas no bairro Pedra Branca e ampliar horizontes. O que sei é que rapidamente buscava conhecer histórias de vida da minha gente. “Entrevistava” as pessoas comuns de uma forma dialogada, natural, em qualquer ambiente que pudesse haver alguma interação, como na antiga venda do Pinduka ou nas adegas próximas, até chegar naqueles que ele afirmava ser os “últimos residuais sitiantes”, especialmente da área rural do vale do Pico da Pedra Branca.
Brandão já era muito conhecido no mundo acadêmico em todo o
Brasil. Ele estava entre os seus 48 / 50 anos de idade e, em algumas visitas
posteriores, trouxe sua esposa Maria Alice, seus filhos André e Luciana para
conhecerem o lugar que, provavelmente, já o conquistava significativamente. Com
a sua vitalidade, ia de Caldas à Pocinhos, de carona ou de ônibus, dali para o
bairro Pedra Branca, caminhando ou na caçamba de uma caminhonete, voltando até
a adega do Sr. Vicentinho (antigo Vinho do Padre, que depois ficou Vinho do
Padroeiro), na adega do Sr. Firmino Generoso, sempre buscando acompanhar e
entender as pessoas que viviam da uva e do vinho. Como foi relatado em sua
pesquisa “VINHO AMARGO, resistência, tradição e modernidade entre sitiantes
produtores de uva e vinho no Sul de Minas Gerais”, o grande interesse do nosso
personagem como pesquisador era “saber os
motivos pelos quais, em certos casos, uma ampla categoria de produtores rurais
camponeses resiste a quase todos os tipos de inovação” e ainda pela “região que tinha como uma de suas
características principais o haver sido uma promissora área de produção de um
tipo de agricultura hoje (1989/1990) em franca decadência.” Ele apreciava
cada cacho de uva ou “taça” de vinho, cuja degustação era única. Em cada lugar
que passava, aprendia as nossas manias e rapidamente percebeu que era mais
vantajoso pedir “meio vinho”, que vinha um pouco abaixo da marca do copo
americano, bem como se viesse cheio poderia derramar alguns goles preciosos.
| Carlos Rodrigues Brandão Professor por onde caminhasse |
Ao reler o seu estudo, com o prazer de ecoar, pelas minhas memórias, sinto como se fosse narrado em um documentário com a sua voz marcante e afável. Com vigor e verdade, serenidade para tranquilizar os mais afoitos no corre de cada dia, seja lá de qual era. Em seu estudo minucioso, com a rigidez acadêmica, traz um histórico amplo com dados e gráficos daquela época. Muita coisa havia mudado, muitas delas continuam mudando: não tem jeito.
Foi significativo pra nós que fomos jovens atuantes em uma
pastoral da igreja católica receber o convite de um professor e pesquisador
para ajudarmos com os questionários e entrevistas, ainda mais sendo remunerado
com sessenta dólares que, no fim da década de 1980, era uma quantia
considerável. Conseguimos equipar a sede da PJ – Pastoral da Juventude, que
ficava em uma das salas do COPAS, com livros e um armário de aço, além de
materiais necessários para nossos encontros. O dinheiro rendeu até para
pagarmos o Sr. Nelson da Kombi para transportar nosso grupo em um encontro da
juventude em Pouso Alegre/MG. Mas em sua pesquisa, fui incumbido para coordenar,
além de entrevistar produtores de uva e vinho a partir de um questionário,
juntamente com outros amigos e amigas, bem como gravar depoimentos e histórias
em um gravador portátil de fita cassete, emprestado para tal. Tive a honra de gravar
diálogos com três ou quatro produtores de uva e vinho, em suas propriedades.
Mas fiquei emocionado quando meu avô, José Cândido, sitiante com um lindo
parreiral naquela ocasião, no bairro Pedra Branca, quando me concedeu uma
entrevista maravilhosa que muito nos aproximou em afeto e cumplicidade.
Procurei deixar tanto ele como minha avó, Maria Aparecida, falarem o que
quisessem sobre o cultivo das parreiras, de fundamental importância para o
sustento e felicidade da família.
Consegui registrar em áudio muita coisa que, infelizmente, se perdeu
com a fita que foi para a transcrição. Mas, uma das preciosidades dessa
entrevista que meu avô compartilhou comigo e com minha avó, na sala da sua casa
na cidade, Brandão a reproduziu em seu texto final:
“Todo ano eu mando benzer e os passarinhos não dá uma bicada e não tem curativo (e não coloca veneno). E os outros cura (colocam veneno) para os passarinhos não bicar. É um costume. Como é que dizem? É uma fé. O mais é a fé mesmo que a gente manda benzer e depois eu ponho, né? Uma palha benta por causa da chuva de vento e de pedra. Porque se dá uma chuva de pedra numa lavoura ela acaba. Por exemplo, a poda é no mês de agosto e já tem empate de poda, de reforma de parreira. Já é dinheiro empatado. É a capina da seca que eu mandei capinar. Agora, chega no fim de setembro vem a poda. Acabou de formigar a parreira, começou a brotar, você tem que andar nela todo o santo dia, porque se o oieiro (broto) não aponta hoje, ele aponta amanhã e se você não vai amanhã e tirou o cálice de uma, pronto, acabou. (...) É uma lavoura difícil. Porque tem muito que põe veneno pra matar passarinho. Agora, eu ponho canjiquinha e nem mexe na uva. E aí não precisa curar com veneno, né? Agora, por veneno na uva prejudica o povo (faz mal à saúde do consumidor).“
| Zé do Correio, Vô Zé Cândido, Vó Cida, Tia Arlete e Marcos (bebê) Batismo - 30/01/1966 |
A conversa foi muito mais longa que isso. Meus avós, que também eram os meus padrinhos de batismo, contaram “causos dos antigos” que nos faziam rir juntos. Entretanto, foi fundamental ter esse trecho guardado em um estudo tão relevante inspirando as novas gerações sobre a importância de preservação de toda a forma de vida.
Diante de tanta generosidade, cabe ainda relembrar que, eu e
minha companheira Milva, tivemos a honra da presença deste amigo em nosso
casamento em 1991. Ao final da cerimônia, na Igreja Matriz de Nossa Senhora do
Patrocínio, ele veio nos cumprimentar e ofereceu a sua casa no litoral paulista
para a nossa lua de mel. Entregou as chaves sem combinar quando deveríamos
devolver. Ficamos imensamente gratos e nos deslocamos de ônibus até a sua
acolhedora casa de veraneio alguns dias depois. Quando fomos assistir a filmagem
do nosso casamento, ficamos boquiabertos com a humildade daquele homem que
aguardou praticamente todos os convidados para, somente no fim, se aproximar e
estar um pouco conosco, pra conversar e nos felicitar com uma alegria irradiante.
| Rosa dos Ventos - 2008 |
Prosear também era um dom do Brandão. Gostava do vinho amargo de Caldas. Teve muitas “aulas” com os nossos “fazedores de vinho” (termo para demonstrar a importância dos produtores do vinho artesanal, longe de querer a grande produção, mas de realizar uma obra), além dos que já citei, o Sr. Zé Dilau, Joaquim Faria e Batista Monteiro, pelo que me recordo das notícias que o Brandão compartilhava comigo. Ele relatou na introdução da sua pesquisa que “algumas pessoas em Caldas e, especialmente, no distrito de Pocinhos do Rio Verde e no Bairro Pedra Branca, foram a todo momento companheiros de trabalho e amigos a quem apenas agradecer é, como o primeiro copo de um bom vinho, um bom começo, mas ainda pouco.” Poético como sempre e com palavras anunciadas diretamente do seu coração.
| Casa na estrada do bairro Pedra Branca |
Arrisco, por entre essas palavras finais – mas não finitas - que a sua grande paixão em Caldas, posso desconfiar, foi a Pedra Branca, percebendo a chegada daquele ser iluminado pisando no solo duro e empoeirado das estradas que quase a alcançam, o abraçou desde o primeiro momento em que respirou aquele ar. Com isso, vibrou e perambulou por muitas casas simples que ainda estão por lá. Aqui ficamos tentando entender os sentimentos das pessoas, do povo mais simples e acolhedor, como Brandão conseguiu e traduziu tantas vezes para o mundo. Se encantou e depois achou um canto por lá mesmo, no vale. Interessante lembrar, que o vendedor das terras disse para ele que estaria comprando um terreno sujo, por isso que seria mais barato. Acabou me confidenciando que entendeu ser um pedaço com mata e capoeira, justamente isso que havia sonhado e sua pretensão era partilhar com os amigos: um lugar para ser a ROSA DOS VENTOS!
Agora, essa história é um tanto mais conhecida e continua no
coração da gente que pode estar-ficar-prosear-recitar-cantar por alguns minutos
ou em um roteiro completo!
Salve a Pedra Branca!
| Pico da Pedra Branca Captura no Sítio Santa Bárbara |
Para saber um pouco mais da vida de Carlos Rodrigues Brandão:
Carlos Brandão (professor) – Wikipédia, a enciclopédia livre
Maravilha de texto !
ResponderExcluirQue bom que gostou! Se quiser, pode seguir nosso blog. Abraço
ExcluirGrande Brandão, belo texto meu amigo, grande experiência vivida nos idos de 2008.A obra de Brandão ainda é cultivada em minha prática. Grande abraço, sempre acompanhando os textos.
ResponderExcluirPessoa maravilhosa! Aprendemos juntos naquela pós que tivemos o privilégio de beber na fonte! Abraço João!
ExcluirGrande Brandão conheci várias pessoas especiais através dele na Rosa dos Ventos
ResponderExcluirNosso mestre sabia conectar ideias e pessoas! Deixou saudades!
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