O domingo é mãe!

Por Marcos Almeida

Os meus domingos, exatamente tantos. Pelas minhas contas, até agora, "dominguei" mais de três mil vezes na vida. Entre suas muitas diferenças e semelhanças, cenas incríveis que guardo de cor (ação). Acredito que a maioria dos retratos são capturados neste dia, excluindo aqueles para documentos, pelo menos antes das “chapas digitais”. Algum curioso como eu, matuta sobre qualquer coisa, especialmente quando ninguém presta atenção. E aí quer contar, do seu jeito, sem se preocupar com o julgamento da audiência.


Ivete, com 19 anos

Infância e domingo se confundem. Tal dia igual ao restante da semana para uma criança: comer, beber, dormir. Mas para a geradora, a rotina é a forma sublime de amar. De se reinventar. Tempos modernos trouxe duplas e triplas jornadas e o aperto maior no coração. O sétimo dia pra nós, descansar, genitora dobra e redobra roupas e turnos. O bebê nem sonha em entender, exceto pelo sorriso de Deus no semblante feminino. No colo da mãe, na janela da sala, o que poderia mais desejar?


Ivete, mãe da Renata e do Marcos

Adolescência, ela reza. Mesmo assim, o dia de descanso para muitos chega rápido. “Saco ardido”, dizia dona Ivete. Só pensa em bola e correria. Na hora do almoço, aquela maionese me nutria e o seu carinho no sabor de quem sabia fazer mágica com o pouco que tinha. A querida madre discreta nem comentava que, durante a semana, havia encontrado uma bolsa escolar de um moleque (eu) que matou aula para não ter que “dar o ponto”. Chamou a minha atenção no particular. Em público, costumava elogiar, com parcimônia para que eu não ficasse convencido de que tudo girava ao meu redor.

Juventude, dia do Senhor, raridade ficar em casa. No templo e na comunidade vivi com as bênçãos de uma antiga filha de Maria ou Marianinha. Aquela que gostava de participar das coroações da Mãezinha do Céu, que ainda insiste a me ouvir: “eu não sei rezar, eu só sei dizer, que quero te amar.” No fim da noite, ela cochilava, mas terminava alguma peça de crochê, por vezes, com os óculos caídos. Só dormia de verdade após a cria chegar.

Renata, Ivete e Marcos

A riqueza da família foi poder viver em comunhão nos encontros de jovens, onde uma certa vez, o padre coordenador elogiou uma iguaria da mamãe que preparou a refeição para mais de cinquenta: “arroz cardial: quase virando papa”. Ela ficava vermelha e dizia que o Zé do Correio que a desorientava na cozinha. Verdade seja dita, engraçado, mas a pura verdade. Porém, nada terminava sem uma boa risada. E estava tudo perfeito para todo mundo, porque havia carinho na grande mesa do pré-seminário de Caldas.

Meus pais comigo, Milva e Mel (branquinha)

Maioridade, vida além da casa, saindo pra trabalhar em uma certa distância. Juntava a filha, a nora, o marido (pai engraçadinho), que desatento, tentou alçar as escadas do ônibus segurando duas malas, uma em cada mão. A porta da jardineira era estreita para um único galeio e o fez cair de costas. Nada grave, ainda bem. Situação que só fiquei sabendo ao ver toda a família subindo a rua da rodoviária de Campestre/MG numa gargalhada só. Aliás, o riso incontinente iniciou-se durante a viagem, incluindo todos os passageiros desconhecidos. Era um sábado, carregavam muita matula, para que o próximo dia fosse repleto de partilha e memórias.

Prosa boa, Zé Do Correio, Dito da Bahia e Maria

Por esses tempos, aquela doce mulher certamente sentiu a falta do convívio diário, com a perda de alguns fins de semana para a família da nora. Eu, porém, saí ganhando: outra mãe, Maria e outro pai, Dito. Mas, quando reuníamos os dois galhos frondosos dessa grande árvore, não bastava uma refeição, era preciso uma cantoria. Violão desafinado, caderninho com as cifras, mas um coral animado.

Júlia, Vó Ivete, Otávio e Renata

Nasceram os netos. Dona Ivete só aumentava o seu repertório: assados e cozidos, lanches e quitutes, roscas, bolos, nozinho açucarado, forrobodó (chamado por ela simplesmente de rolinho-de-coco). Fazia doce de casca de limão, de cidra, de abóbora, de leite. Aprendera com vó Cida a maioria. A dedicação tinha intenção de alegrar não só os filhos, mas seus rebentos vindos lá pelo fim do milênio passado.

Zé do Correio, Ivete, Vó Cida e Vô "Pau Veio"
1979

A churrasqueira improvisada, construída por um certo mestre do Piumhi (pouco prático e afobado), mesmo com a falta de prumo, aguentou três gerações sem abalar, “queimou” muita carne sobre a brasa ardente. Tudo ornamentado por duas parreiras que se entrelaçaram e um limoeiro que fazia sombra sobre os que gostavam de arrodear para beliscar.

Parreiras do quintal da vó

Se coincidisse com festa de aniversário, bolo com cobertura de abacaxi. Mas antes, vinha a leitoa a pururuca. Para a sexta-feira santa, batata com bacalhau. Páscoa, talvez um pernil assado, uma costela cozida ou costelinha de porco de lamber os beiços. Após tanta comilança, potinhos na geladeira, famosas marmitinhas que, se bobeássemos, daria para a semana inteira.

Ivete e sua iguaria, leitoa a pururuca

Pra “fazer o quilo” (digestão), como era de costume, sentávamos próximo ao muro atrás de um degrau alto que aflora do chão, especial para sentar e prosear. Também bom para fotografar um com o outro ou todos juntos. O tal muro, tempos atrás, tinha um portão que dava para a casa do vizinho parente, tio Zé Joaquim.

Uma casa de mãe e um domingo parecem substâncias que acalentam o nosso cerne. Ou melhor, o coração de quem nunca deixou de cuidar, rezar, amar, especialmente no dia dedicado ao relacionamento humano e deste com o sagrado. Em união, tornam-se sacramento que dá força e certeza para o momento da ausência física. O perfume do ambiente e o sorriso acolhedor, a alegria da chegada e a fé na partida, tudo isso é impossível esquecer.

- Vai com Deus, meu filho, minha filha!

Desse jeitinho, aquela que nos gerou, se despedia. Aí entendi que o domingo é mãe!

A vó da Bárbara




Comentários

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    1. Que bom que gostou! Se quiser, pode compartilhar com os amigos pelo whatsapp. Grato

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  2. Que delicia saber que participei,mesmo que em segundo plano de tantas coisas boas nesta família!

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    1. Obrigado por comentar. Fiquei curioso em saber quem escreveu. Se puder, comente novamente.

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