Sítio Santa Bárbara

Por Marcos Almeida

Saudade é a palavra que melhor representa um tempo de felicidade quando me recordo do sítio dos meus avós, Zé Cândido e dona Cida, primos que se encontraram no altar em um tempo distante e que encaminharam novas vidas para alegrar o bairro da Pedra Branca. E algumas coisas que me fazem recordar daquele lugar no contexto de um tempo que passou, posso resumir através de palavras soltas que se conectam: preguiça, pedra, raio, lenha, paina, palha, pera, parreiral e amor.

Vó Cida e Vô Zé Cândido

Sítio Santa Bárbara creio que era em homenagem, além da santa protetora por ocasião das tempestades, raios e trovões, a genitora do meu avô, chamada Maria Bárbara, que não tive tanto contato, mas nas poucas vezes que a vi pude sentir o seu carinho acolhedor. Faleceu quando eu ainda era menino novo. A capela do bairro é também dedicada a mesma santa, onde muitos festejos tive o privilégio de participar.

- Vamos pra roça amanhã bem cedo! Dizia minha mãe, Dona Ivete, uma jovem que se tornou mãe aos dezoito anos.

O que imagina uma criança?  Para mim era inconcebível a aventura de acordar as cinco da madrugada quando tinha meus cinco, dez ou quinze anos. A ideia do meu avô, é claro, era chegar a tempo para o retiro do leite e acompanhar o trabalho dos camaradas. E o desespero tomava conta de todos os convocados para não atrasar ou piorar a ansiedade do sitiante. E o meu bom humor demorava a chegar, dominado pelo sono que não se encerrava com o despertar matutino. De Caldas até o curral tínhamos uma distância de aproximadamente doze quilômetros. De jipe - ou no futuro de fusca -, o bom era aproveitar o trecho de estrada de terra. Uma aventura por entre os estercos de vaca e os animais que insistiam não sair da frente do veículo do motorista pouco hábil, meu avô, que aprendera a “choferar” em idade mais avançada.

- Sai da frente bezerro! Sai daí mijona...

O brado do impaciente comandante que se arriscava no volante. A toada era no máximo a quarenta quilômetros por hora, mas quando um bicho empacava na frente do carro, o grito e a buzina eram as válvulas de escape do nervosismo latente de quem queria chegar antes do sol raiar. Meu avô, apelidado de "Pau Véio", aprendeu a dirigir com o tio Jair Silvestre no “campo de bola” da Pedra Branca. Na sua primeira condução, quando conseguiu engatar a segunda marcha, quase bateu na trave, ou seja, passou dentro do gol "tirando tinta" de um dos postes.

Então, pensar o quê?

- Vamos morrer hoje mesmo! Será que esse carro não vai rolar pelas ribanceiras da tortuosa estrada de chão? Minha mãe cochichava ao meu lado, segurando um terço.

Mas a diversão começava logo quando surgiam as primeiras porteiras. Não eram poucas. Haviam poucos mata-burros naquela época. Tudo muito rústico e improvisado. A incumbência de abrir a porteira poderia ser um jugo nos dias de chuva, com a lama que cobria e sujava os sapatos; mas era um momento de alegria ter um momento de pausa para ter o que comentar, pois o carro parava para alguém exercer o movimento de caminhar para dar passagem, abrindo e fechando o obstáculo. Instante precioso de observar a natureza pela janela de plástico do Jipe e imaginar as aventuras que poderiam surgir.

Para entender essa imagem é importante ressaltar que no início da década de 1970 vivíamos a emoção de assistir a TV em preto e branco, sendo o rádio ainda o veículo de comunicação mais popular. Nada de celular, lap top ou TV Smart para explicar tamanha emoção do movimento quase sempre sonoro das porteiras, que rangiam em suas imensas dobradiças e a batida das madeiras que se encontravam, oferecendo o estrondo mais suave para quem hoje visita o bairro e escuta as dinamites das pedreiras.

E ao chegar à última porteira, antes do curral da casa, toda a preguiça se dissipava, como a neblina com o raiar do sol. Enxergar de longe a pedra enorme que aflorava da terra, na verdade uma laje, por se tratar de uma rocha extensa de grande dimensão, praticamente plana no topo, mas com declives fortes em suas bordas e caprichosamente esculpida pela chuva e pelo vento, onde surgiam as brechas que, por tantas vezes, me escondia nas brincadeiras de criança. Pisar com os pés descalços e sentir as diversas temperaturas, texturas e emoções, nunca mais vivi igual sensação.

Na laje do sítio
Dito da Bahia, Lu, Júlia, Otávio,
Luciano, Cleide e Zé do Correio

Naquele tempo, a laje dava imponência para quem passava da estrada que passa pela serra oposta do sítio, entrecortando as propriedades que antigamente eram do tio Jairzinho, Mané Carminha e Eurico, todos parentes queridos nossos. A grande utilidade daquela rocha, para os meus avós, era para a secagem do feijão; era lá que se "batia o feijão", ou seja, a colheita era esparramada para receber o calor do sol e favorecer a separação da leguminosa de sua "bagem" (casca). Que delícia lembrar e ainda sentir o sabor do feijão novo, cozido lentamente naquele fogão à lenha, que ainda recordarei neste instante de memória.

Mas para mim, para minha irmã Renata e para tantas outras crianças entre primos e amigos que pisaram naquela laje, certamente era o espírito de aventura que se instalava. Pique-esconde, faroeste com "revolvinho de espoleta", pista off-road para carrinhos, cavalinho de cabo de vassoura, estilingue (mas nunca acertei um passarinho), comer milho verde...

Casa principal do Sítio Santa Bárbara - Anos 2000

Em um dia nublado, saboreando essa iguaria cozida em um grande tacho sobre o fogão à lenha, junto da minha tia Arlete, olhando para a planície onde avistava-se um lindo parreiral e um pinheiro no meio do pasto, conheci de perto um fenômeno da natureza que ainda me dá medo. O tempo já estava mudando e o vento ficava mais forte, mas nenhum sinal de que algo fora do comum iria acontecer. Mas, minha tia percebendo os sinais do clima, me chamou para ir para casa, sendo que ela saiu na frente e eu uns cinco metros atrás caminhando feliz por ter aproveitado até o último grão do saboroso milho.

De repente, uma forte luz parecia separar eu de minha tia, uma faísca que parecia ter caído naquela pedra abençoada, o que fez disparar o meu coração e corri desembestado rumo a casa. Nada havia acontecido, mas chegamos pálidos e entramos pela porta da cozinha que dava para a laje. Água com açúcar para acalmar também as mães. Pela janela da cozinha alguém percebeu que o pinheiro, que ficava próximo, estava caído e queimado. Serviu de para-raios. Salvou as nossas vidas. Benção de Deus e proteção de Santa Bárbara.

Vista do antigo Sítio Santa Bárbara - 2025
A enorme laje

Tudo isso me impulsionou a conhecer a oração em louvor a esta santinha cuidadora: "Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que possa enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas de minha vida, para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protetora, e render graças a Deus, criador do céu, da terra e da natureza: este Deus que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Por Cristo, nosso Senhor. Amém."

Agora, pedimos também a sua intercessão para que os homens e o seu dinheiro, o seu capital, não piorem as coisas, com agressões insanas à Mãe Natureza!

Capela Santa Bárbara - Pedra Branca - 2025

Água, terra, fogo e ar!

Nada melhor, após tamanho susto, do que ficar olhando para o fogo produzido pela lenha de um fogão vermelho e encravado no chão, liberando a sua fumaça por uma chaminé. Mas, mesmo na intenção de conduzi-la para fora da casa, criando a imagem mais singela para uma criança que aprende a desenhar, a cozinha também se enfumaçava e a parede próxima ao fogareiro revelava-se com o tempo mais escura. Ver e viver a combustão lenta e calma da madeira, que assava a batata-doce por entre as brasas, cozinhava o feijão mais gostoso do mundo no pequeno caldeirão de ferro e "fritava" o queijo na chapa. Sabores inconfundíveis e únicos que não se imita na cidade, seja no forno elétrico ou na panela antiaderente. De que adianta nesta situação tamanha tecnologia?

Após aproveitar tudo o que a lenha oferecia chegava a hora de tomar banho na bacia. Meu pai se arriscava na bica do lado de fora, lavando as partes, independente se estivesse calor ou frio. No crepúsculo nada dava para ser visto da porta da cozinha, mas sempre havia uma brincadeira quando a pequena aventura do Zé do Correio, desinibido como nenhum outro nesta vida. Lembro que meu avô passava sabugo de milho na sola dos pés para ajudar na limpeza e na massagem. Depois, dormia sem cerimônia alguma num ronco só, acordando disposto para a labuta do dia seguinte. Água quente aquecida pelo fogo da madeira que era cuidadosamente cortada no quintal, temperando aos poucos na bacia com a água fria da mina que naqueles tempos jamais secara.  Aquele recipiente para mim era enorme em uma época, mas com o tempo percebia que diminuía e me apertava a cada vez que necessitava do banho, sempre acompanhado por uma vela ou lamparina que dava mais um motivo para imaginações e brincadeiras.

Mas após a higiene noturna, o cheiro do travesseiro de paina me conduzia para os sonhos que se misturavam com o colchão de palha afofado para acolher melhor o corpo cansado das estripulias do dia. Uma combinação oriunda do prazer de ver sua confecção, desde a colheita do grande fruto da paineira que se abre quando maduro, liberando boa quantidade de paina sedosa, entremeada com as sementes que são carregadas pelo vento, com a seleção das palhas de milho no paiol para não deixar as tábuas das camas impedirem cada um repousar. No começo, virar de um lado para o outro trazia o desconforto do barulho, mas, após alguns ajustes, tornava-se a mais suave cantiga de ninar. E na manhã todos acordavam renovados ouvindo os mugidos das vacas leiteiras que adentravam no curral para receber o "trato" e o capataz realizar a ordenha. E o colchão de palha e o travesseiro de paina, totalmente achatados, empurravam o corpo renovado para se aventurar em mais um dia.

Com o olhar atento a tudo, percebi que o assoalho do quarto onde dormia tinha um pequeno buraco originado pelo nó da madeira e dava para ver o porão onde meu avô guardava o arreio e apetrechos da carroça. À noite dava medo, já que poderia subir algum inseto indesejado. Mas com a aurora, surgia um canudo de luz que quebrava a escuridão, pois as janelas de madeira vedavam totalmente o lado de fora e não deixavam o breu terminar. Então, realmente era a hora de levantar!

Dia de colheita: primeiro rumo às pereiras que se enfileiravam ao lado de um parreiral carregado de cachos de niágara rosada e branca. Os jacás vazios esperavam acolher inúmeras peras d'água cheirosas. Primeira mordida: não sei se eu estava com água na boca ou se a fruta inundou minhas papilas como nunca mais senti. Por vários anos me perguntei se essa variedade era d'água por salivar tanto antes da degustação ou se tinha a capacidade de trazer o mais puro H2O da mãe-terra e nutrir não só o corpo, mas todo o nosso espírito. Uma mistura do cheiro da terra e de esperança renovada de que nada falta para quem planta sem ter a certeza de quanto tempo terá que esperar para colher.

Ivete, Zé do Correio e Zé Cândido
Colheita da pera / milho para pamonha

Depois, rumo ao parreiral. Mutirão de parentes, amigos e vizinhos que deixavam suas obrigações e trocavam dias entre si para que todos garantissem a safra e o seu ganho. Mas, creio piamente que, o principal motivo para esse encontro, era a convivência. Piadas, causos, cantorias... Ah, meu Deus, isso me faz chorar! Dói muito lembrar e não ter a chance ou a coragem de viver isso novamente. A cidade enlata as pessoas, coloca rótulos, comercializa o que você é (ou não é). No trabalho comunitário tudo é muito solidário. A preparação do almoço era algo que entusiasmava as mulheres. Elas se dispunham a caprichar ainda mais no sabor e no amor, pois o cardápio não enchia somente os olhos e o bucho, mas também o coração. Lembro bem da batata cozida com carne moída, feijão com farinha de milho, couve refogada e um arroz soltinho com um ovo estalado por cima de tudo. Não precisava de mais nada. Sentado em um barranco, pedra ou toco, prato na não, colher para facilitar a ingestão, a mistura de sabores com a sabedoria que cada qual tinha o seu valor. Ninguém comia sem a repetição, pois a tarefa ainda seria longa até o término da colheita. E cada qual com suas histórias e mentiras, partilhadas como o suor do rosto que regava aquele chão.

Colheita da uva Sítio Santa Bárbara

E ainda, todos podiam degustar a mais saborosa uva após a refeição, pois eram muitos cachos no cesto. Depois, o jacá na balança, conferido por arroba, despachado para a carroça (mais recente para o caminhão), que seguia rumo a uma adega para preparar o vinho, alegria das festas, bebida que nos aquece do frio intenso do inverno das montanhas e ajuda a desembaraçar as línguas inibidas. Muitos motivos para experienciar a vida e o talento de cada um.

Cada mutirão, uma comprovação: o amor permeava tudo, a preguiça, a pedra, o raio, a lenha, a paina, a palha, a pera, a parreiral. Tudo além de todas as pessoas, de todos os tipos e jeitos, que viveram próximas ao Sítio Santa Bárbara!






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