1984 e um novo grupo de coroinhas em Caldas

 

Por Marcos Almeida

“O lugar mais seguro para o navio ficar é no porto. Mas essa não é a finalidade para a qual foi construído. Para um navio bem construído, o mundo é pequeno.” Içami Tiba

Uma das minhas fortes indagações para o meu íntimo, quando adentrava pela juventude, era em quais águas deveria navegar. Na década de 1980, era costume sentirmos mais poderosos ao completar dezoito anos. Talvez, isso nem tenha mudado substancialmente, dependendo do grau do binômio liberdade x disciplina que cada jovem possa ter desenvolvido. Mas, tamanha inquietação que eu tinha me jogou de corpo e alma em trabalhos pastorais da igreja Católica, em Caldas/MG. Participar de grupo de jovens era uma rotina gostosa e de muito aprendizado, certamente porque errei, vez ou outra, pela própria transição da adolescência que não acontece do dia pra noite.

Valtinho, Tony, Rodrigo Faria, Cazé, Jean,
Geraldinho, Carlão e Rodrigo Gomes.
Atrás: Marcos, Pe. Poggetto, Dom Gubiotti,
Luciano Pontes, Padre Joãozinho e Cleber Generoso

Algo, entretanto, foi fundamental para o meu amadurecimento nessa fase um tanto encabulada: um convite pelo Padre Poggetto juntamente com Alexandre Fonseca, para coordenar um grupo de acólitos. Seriam, inicialmente, somente meninos, que receberiam orientações para ajudarem o sacerdote no momento das celebrações litúrgicas. Meu questionamento inicial foi que eu nunca havia servido no altar e que não sabia nem quais eram os objetos litúrgicos, como turíbulo, galhetas, sanguinho, patena entre outros. Logo fui convencido que isso seria fácil dominar, pois o principal objetivo de formar novos “coroinhas” para a comunidade caldense seria a formação religiosa e cidadã de uma pequena turma de crianças e pré-adolescentes.

Geraldinho, Tony, Marcos, Emerson, Valter, Rodrigo G. e Luciano
Cazé, Rodrigo Faria, Jean, Carlão e Valtinho

Coragem e animação! Começamos a pensar o que poderíamos proporcionar em encontros semanais, evitando reuniões enfadonhas de pura teoria, mas sim momentos de convivência, aprendizado e participação de uma faixa etária que parecia “fugir” das missas após o término da catequese e a Primeira Eucaristia.

Outro parceiro nesta empreitada, Luciano Pontes, sendo ainda de pouca idade, mas um tanto mais velho do que nosso público-alvo, integrou inicialmente o grupo, pois tinha mais conhecimento em servir no altar e seria fundamental no acolhimento aos outros integrantes. Apesar da nossa diferença de idade – apesar de que hoje ele parece mais velho que eu (tô rindo aqui) – cerca de cinco anos, a maturidade dele era por certo maior que a minha. Eu, filho do Zé do Correio, aprendi desde cedo - e talvez em uma dose exagerada – que tudo poderia começar e terminar com uma brincadeira. Imaginem isso naquela época, muito diferente desse primeiro quartil de século no terceiro milênio.

Tudo ajeitado entre nós, começamos a convidar após as missas; abordávamos pais na saída da igreja; e, visitávamos algumas famílias. Tudo isso para explicar minuciosamente como seria o nosso trabalho e o envolvimento tanto dos pré-adolescentes como dos pais, mães ou responsáveis. Nossa preocupação também foi não criar um grupo elitista, mas com participação diversificada. Fomos até a Santa Cruz, Jardim Bela Vista, Morro da Barreira e Centro. Cidade pequena, uma família lembrava de outra que tinha um filho entre 10 e 12 anos e essa era a nossa caminhada.

Como dizia Içami Tiba, “a criança deve ser educada e preparada para ser seu próprio porto seguro. Assim, o mundo também será pequeno para ela, porque mais amplos serão seus horizontes”. Sem conhecer esse pensamento, utilizávamos palavras semelhantes para o convencimento dos adultos sobre esse novo momento de vida de seus filhos ou netos.

Então, um certo dia, não recordo a data exata, em 1984, fizemos uma primeira reunião. Talvez com nove ou dez meninos fantásticos. Logo depois, vieram outros. Correndo o risco de esquecer de alguém, os primeiros acólitos (e que estão nos diversos retratos) foram: Valter Teixeira, Toni D’Ambrósio, Rodrigo Faria, Carlos José Gabriel, Jean Breves, Emerson Breves, Geraldinho, Carlos Eduardo Oliveira, Rodrigo Cesar Gomes, Edgard Parreira, Nilsinho Faria e Valtinho Pontes.

Um ano depois, novos integrantes, sendo: Alan Barbosa, Clayton Barbosa, Pedro Claudio e Vinicius Cesar. Futuramente, Luciano Pontes e Carlos José assumiram o grupo e, creio, lembrarão de mil outros “causos” pra contar.

O nome escolhido: Grupo de Coroinhas Nossa Senhora do Patrocínio. Pensamos no ritual para a recepção das túnicas e da cruz durante uma celebração festiva. Padre Poggetto, mesmo se não estivesse no melhor humor, dava suas risadas ao ver tanta novidade no templo, quando alguns se atrapalhavam ao vestir a túnica, certamente, por ainda não estarem acostumados. Mas era uma cena para encher de alegria toda a assembleia que ficava curiosa em saber quem seria cada um. Fazíamos a apresentação individual após devidamente paramentado. Vale lembrar que a alegria do momento era combinada com o respeito exigido. Isto tornava ainda mais belo todo o cerimonial, porém infinitamente menor que a presença do Cristo na Eucaristia, o objetivo principal de toda aquela consagração.

Alan, Clayton, Pedro Claudio, Vinícius e Padre Poggetto
Novos acólitos em 1985

A sedinha, pequeno espaço abaixo da igreja, era o local dos nossos encontros. Adotamos um livro que trazia diversos temas de formação integral daquela rapaziada repleta de curiosidades. A coordenação dava o tom para que o diálogo e a participação acontecessem. Havia momento de oração, de leitura da Palavra, de partilha do entendimento, uma interação lúdica, e planejamento para a escala, onde em duplas assumiam a responsabilidade de estarem ao lado do vigário no altar. Após a catequese, um jogo de futebol de botão também servia para gerar laços de amizade entre os participantes ou, às vezes, algum desentendimento sobre a regra do jogo onde tudo poderia terminar com algum jogador insatisfeito com o seu desempenho. De qualquer forma, na próxima, tudo voltava ao normal e a boa convivência seguia como base.

Vale registrar que, no princípio dos trabalhos, tivemos a colaboração e orientação de um dedicado seminarista da cidade de Ouro Fino/MG, Marco Aurélio, que realizava seu trabalho pastoral na comunidade (um tipo de estágio de padre) aos finais de semana. Era uma alegria contar com a sua dedicação e parceria, suas palavras e cantorias. Hoje, para nossa alegria e da Igreja, Dom Gubiotti é bispo na Diocese de Itabira e Coronel Fabriciano, Minas Gerais (*).

Dom Marco Aurélio Gubiotti e o 
Grupo de Coroinhas N. Sra. do Patrocínio

O grupo de coroinhas também era incentivado a participar do TUCA – Todos Unidos Caminhamos no Amor, coordenado com dedicação pela professora Maria Augusta Barbosa. Era uma forma dos acólitos interagirem com outros meninos e meninas da mesma faixa etária. A nossa comunidade, apesar dos problemas normais que enfrentávamos, tanto de recursos como de relacionamento, procurávamos planejar juntos para que houvesse um maior envolvimento e participação de todo o povo.

Com esse entrosamento, tivemos a oportunidade de fazer caminhadas até a Pedra do Coração, levando as turmas para curtir o visual e a natureza. O lanche era incentivado a ser servido de forma partilhada. Havia muita descontração. Porém, a preocupação recaía para os coordenadores, porque era uma tremenda responsabilidade estar em um local onde qualquer descuido poderia causar algum acidente. Entretanto, mesmo sendo um tanto que bagunceiros, ouviam os nossos comandos quando sentíamos algum perigo. Outras vezes, jogamos futebol no Itacor ou na quadra do Copas. Precisávamos estar em forma diante da energia daqueles meninos.

Situações engraçadas aconteceram, certamente. Imaginem um grupo de meninos entusiasmados com todas as novidades que surgiam, o que poderia acontecer? Exemplo disso era a disputa que existia para, no momento da consagração da Santa Eucaristia, tocar o sininho quando o sacerdote eleva o pão e o cálice para que os fiéis possam adorar, ponto máximo do Amor de Cristo. Algumas vezes, era necessário um de nós da coordenação intervir para que não transparecesse algum desentendimento ou falta de piedade. Ali, talvez, exercitaram a negociação, sendo que um acionava a sineta ao elevar o pão, e outro quando fosse o cálice com vinho.

E sino realmente era a “sina” dos coroinhas, pois em dias festivos, antes dos cultos ou mesmo durante as celebrações, pelo menos dois deles precisavam subir as escadas íngremes para a torre da igreja, a fim de executar a dobra dos sinos. A corrida para quem chegasse primeiro era ouvida do altar, em plena celebração, que certamente foi repreendida pelo próprio pároco após aquela farra. Padre Poggetto falava de forma rigorosa com eles, mas depois se voltava para mim e ria baixinho daquelas artes. Alguns daqueles serelepes tiveram a honra de aprender os repiques com os saudosos João Galã e José Barbosa Filho, nosso Zé Coco.

Valeu, José Barbosa Filho

Nas procissões, a alegria daqueles garotos era agitar a matraca ou colocar a brasa e incenso no turíbulo. Sem força suficiente nos braços, logo desistiam do instrumento de celebrações introspectivas e tentavam melhor sorte com a dissipação da fumaça em momentos solenes. Certa vez, um dos nossos queridos sofreu um tipo de pane diante do cheiro forte do incenso, precisando sair da igreja imediatamente para respirar um ar renovado. Para o restante da turminha era só zoação.

As missas nas comunidades rurais eram esporádicas – normalmente uma vez por mês - devido a quantidade de capelas espalhadas pelo município e o custo que deveria ser partilhado entre os fiéis. A comunidade dos Pereiras era uma das mais longínquas e com um povo acolhedor e piedoso. Por várias vezes fiz companhia para o celebrante, que normalmente levava uma religiosa e também um ou dois coroinhas no fusca branco da paróquia. A estrada de terra, com muitas curvas e buracos, fazia a gente até a sentir enjoo, especialmente quando viajava no banco traseiro. Certa vez, um dos coroinhas, tendo comido uma farta macarronada pouco antes da viagem, não conseguiu dominar tamanha náusea, vomitando nas costas do Padre Poggetto que, pacientemente, parou o carro, esperou o menino se recuperar, foi limpando com um lenço da melhor forma possível a meleca na sua camisa, para depois completar o trajeto. O medo parecia tomar conta do pequeno acólito, mas o nosso líder espiritual o acalmou dizendo que isso poderia acontecer com qualquer um. Como era de costume, o padre e sua equipe eram recepcionados na casa do líder comunitário, com café com misturas. E não é que o nosso querido coroinha estava pronto para comer umas boas lascas de queijo? Na volta dessa missão, tal experiência fez com que a preparação para os próximos coroinhas exigiria, sendo convidado para viajar com o padre, que fosse em jejum. E era só risada...

Muitas outras estripulias continuam em nossas saudades compartilhadas quando nos encontramos informalmente. Quando avisto algum destes acólitos de 1984/1985, não resisto e solto em alto e bom som: “Meu coroinha”! Aí, é o estopim para relembrarmos de algum momento de felicidade dentro da comunidade de fé!

Luciano, Pe. Poggetto e Marcos
Edgard, Clayton, Vinícius, Rodrigo Faria, Rodrigo Gomes, Pedro e Geraldo
Carlos José, Jean, Emerson, Nilsinho, Tony, Carlão, Valtinho e Alan

Podemos entender melhor quando lemos o que o querido Padre Zezinho escreveu em seu livro “O direito de ser jovem” em 1982: “A felicidade tem origem e tem endereço. Vem de Deus e vai para Deus. Mas, na vinda e na ida, passa pelo homem e pela criação.” Tais palavras deixam algumas reflexões sobre o que permanece ainda comigo, especialmente sobre as bênçãos que recebi de cada um daqueles que convivi naquela comunidade. Todos eles me ajudaram, cada um ao seu modo, a evoluir como ser humano (e ainda tenho muito a desenvolver). Sem planejar, tenho certeza que tudo foi uma preparação para ser pai dos meus filhos, no aprendizado da comunicação com crianças e adolescentes, conhecendo um pouco a beleza de cada fase do ser humano. Ter sido encorajado a assumir tamanha responsabilidade, ainda jovem, com apoio de tantos amigos que citei acima, me dá a certeza de que neste mundo não podemos caminhar isolados. Precisamos nos reunir, trocar, envolver, abraçar. Mais: precisamos caminhar, dar passos ao encontro de alguém que nem esperava a nossa aproximação ou o nosso sorriso. Mais ainda: levando o convite de um certo Galileu que viveu aqui, neste planeta tão maltratado pela força do dinheiro, para mostrar que através de um pequeno serviço, por mais simples, somos capazes de fazer a diferença para alguém. Melhor dizendo, muito mais para nós mesmos. Aprendi e ensinei a não ficar no porto, a seguir pelo mar aberto. Então, só posso reconhecer por terem passado pela minha vida, cada um que fez parte desse momento ímpar na história de cada um de nós, cujo regalo de ter conseguido registrar em alguns retratos memoráveis!

(*) Dom Marco Aurélio Gubiotti - Diocese de Itabira - Cel. Fabriciano

Sr. Manoel Carminha,
Alexandre Fonseca (boné branco)
Marcos Almeida 
Pedra Branca


Comentários

  1. Boas lembrancas... excelentes pessoas e amizades ate hoje.

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  2. Como é bom reviver momentos ímpares como esse!
    Obrigado " Marquinho" por nos proporcionar isso!
    Fique com Deus!!

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    1. Amém! Vamos seguindo com os pés no presente, respeito ao que vivemos e esperança no futuro! Abraço

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  3. Vinícius César Silva31 de outubro de 2025 às 15:32

    Que saudade dessa época!!
    Grandes amigos!!

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