O retrato da romaria
Por Marcos Almeida
Cada vez que vejo um retrato, com tantos parentes perfilados, em ano incerto, ou estimado (a foto anexa provável entre 1956 a 1958), como cada pessoa que, sisudamente, aguardava o comando do retratista para o registro de uma romaria, tento imaginar o antes e o depois da cena eternizada em papel resistente como a luta do povo. Em Aparecida, em frente à Basílica mais antiga, pode ser a primeira pista do que precedera aquela organização de gente trajada com suas melhores roupas, ou alugadas, emprestadas, meninos de calças curtas, posição de sentido, e meninas com vestidos recatados, tal como as matriarcas, que também carregam alguns pequenos e pequenas de colo. Uma criança que acabara de aprender a andar nem percebeu o momento, mas procurou sua mãe ficando de costas. Homens com seus bigodes, predominantemente, e cabelos aparados e devidamente penteados. Um pai apoia sua mão no ombro da filha (emociono). Procuro em cada rosto um “ameaço de sorriso” que dificilmente encontro, a não ser em algumas senhoras percebendo a importância do momento ou pela felicidade instantânea de deixar de lado os seus afazeres do cotidiano. São tantos os detalhes, que nem dou conta de registrar em palavras.
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| Vó Cida e Vô Zé Cândido ao centro e familiares Maioria do bairro Pedra Branca - Caldas/MG |
A fé do povo, a obrigação religiosa, de tempos remotos, acredito que era de uma maior pureza, especialmente pensando nos mais novos, que viam a possibilidade de estar diante de um milagre que se apresentava em imagem, da mãe de Cristo, negra, mas com sua riqueza de significados. Com alguns medos depositados pelos mais velhos como arma de doutrinação, o sagrado muitas vezes era peneirado para ser favorável ao mais forte, encobrindo a misericórdia divina e aflorando o poder do julgamento. O que para os dias atuais ainda não foi extinta tal dominação.
Refletindo além, muitos enfrentaram essa jornada – a ainda
hoje repetem – a pé, em cima do lombo de um animal, de caminhão ou ônibus. Antes,
impossível, tamanha quantidade de fiéis, juntos, conseguiriam fazer comboios com
seus carros luxuosos para se acomodarem em suítes, com banheiros privativos. O
que suponho, sendo que ouvi algumas histórias contadas por minha mãe, é que
ocorria uma excursão estilo mutirão. Ao unir forças, a mobilização de cada um
impactaria no resultado para todos. Uns levavam frango com farofa; outros
preparavam os pães; os doces e quitandas não poderiam ser esquecidos; as
crianças se organizavam para levar – ou criar – alguns brinquedos, ou ainda,
planejavam como poderiam se divertir, após a reza e o pensamento na Virgem
Santa. Cada detalhe era pensado com antecedência, solicitando para o motorista
do caminhão muito zelo, que deveria preparar o veículo com alguma lona para prevenir
do sol ou da chuva. Se o meio de transporte fosse a jardineira, excluindo a tal
cobertura, ainda o cuidado com os pneus, freios, testando a marcha e se a
direção não estaria com folga. Se necessário fosse, o mecânico faria os devidos
ajustes com a inspeção cuidadosa do condutor. E todos oravam por ele.
Marcos Almeida
Ao fundo a Passarela de Aparecida
1986
Sabe-se que alguns romeiros, chegando ao destino, providenciavam de imediato o cumprimento de alguma promessa. Mães providenciavam e acendiam velas da mesma altura dos seus filhos; pais preocupados com as lavouras e nas possíveis pragas, rogavam de joelhos e apresentavam suas ofertas monetárias; rebentos sonhando em serem felizes ou, ainda, pensando em algum amor cultivado, imaginavam realizar o casório naquela igreja (ou onde fosse possível) em data não tão distante. Era costume, para muitos casais católicos, dirigirem-se à cidade paulista para as juras de amor eterno, aos pés da Santa encontrada milagrosamente no Rio Paraíba. Voto correspondido, a expectativa era ser abençoado e protegido, com a reciprocidade de Deus, pela intercessão de Nossa Senhora.
Outros também agradeciam pela cura, pelas dádivas recebidas,
apresentando objetos que depois foram direcionados para o que hoje conhecemos
como a sala dos milagres. Lugar este, que acabou registrando a história de vida
de um povo que tanto sofreu, pela sua cor de pele, sua origem pobre e sua
simplicidade, como de fato viveu a mãe do Salvador. Pelo que sei, rico, remediado
ou desafortunado, na hora do aperto é para a Mãe que se corre.
Participar da Santa Eucaristia, após uma confissão
reparadora, também fazia parte da programação de cada devoto. Um ou outro
poderia nem pisar no templo de sua cidade, mas diante da espiritualidade desfrutada,
desde o início da romaria, com rezas e cânticos entoados por aqueles que já
viviam em comunidade, contagiava até o mais cético que de início pensava
somente fazer companhia e tomar umas biritas nos bares da parte baixa da cidade,
imaginando se manter de uma certa distância do sagrado.
Para hoje, cada um sabe como é uma excursão para o vale do
Paraíba, que acaba incluindo outros centros religiosos ou atrações mundanas, e
pode pensar ser melhor ou pior que antigamente. Não sei. Mas cada um tem a
capacidade de analisar o que uma romaria pode significar em sua vida. E como
não cabe a nenhum de nós julgar a fé de ninguém ou o objetivo de um passeio,
deixo abaixo o que pra mim ecoa em meu íntimo, escrita em 1974 (muito depois de
muitos retratos) por Renato Teixeira na música Romaria:
“Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar!”

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