Um dia de aula e a minha metamorfose
Por Marcos Almeida
Saí da minha casa, rua Ferreira Nascimento esquina com a
travessa pedra branca, por volta das 6h45, em uma manhã fria do inverno
rigoroso de 1978 em Caldas. Vi meu vizinho, amigo e colega de sala, Telmo, que
coincidentemente, assina Eduardo como segundo nome, da mesma forma que eu. Sem
qualquer combinado, seguimos rumo ao Colégio Estadual Vicente Landi Junior,
cuja distância um tanto longa, deveria ser percorrida em 15 minutos. Sabíamos
que tanto o Seu Zé Lemes como o Seu Didi eram exigentes quanto ao horário de
fechamento do portão. Então, acelerávamos o passo também como forma de
aquecimento, enquanto observávamos a geada que cobria os telhados e os carros
esquecidos pela avenida Santa Cruz. Vez ou outra, conversávamos assuntos como
futebol ou alguma tarefa escolar pendente a ser entregue, para dona Maria
Eugênia, professora de geografia ou para dona Ismênia do Dr. Lázaro, de
ciências.
Entramos para a primeira aula e a nossa professora de
português e literatura, dona Leda Lemos, filha do Seu Lau, dono de um comércio
que vendia doces e outras mercadorias, carregava uma vitrola e um LP. Pensei que seria para fazer a gente dançar em sala de aula, o que não me animava em
nada por ser muito tímido em público. Mas, fiquei tranquilo quando, após deixar
a vitrola com o disco acoplado, entregou para cada estudante uma folha mimeografada
com uma poesia em letras azuis. Pediu para começarmos a leitura
silenciosamente. Fiquei perdido nas palavras, nas rimas e em significados que
não conseguia assimilar bem. Afinal, com 12 anos, sétima série, conhecendo
pouco da vida, fiquei observando as reações dos(as) colegas.
As meninas moças pareciam interiorizar melhor a obra. Talvez,
até nem fosse novidade para uma ou outra, pelo hábito da leitura. No meu caso,
não passava de um leitor compulsivo de gibis, naquela tenra idade. Elas, por
sua vez, estavam na fase das primeiras paixões; eu preferia um jogo de botões e
um riacho no verão, até porque eu tinha um ano a menos que toda a turma
praticamente, por ter entrado na primeira série com seis anos.
Mas, após aquele silêncio total da turma, os rapazes com
seus pensamentos soltos e as garotas ansiosas por prosseguirem, a professora
Leda ligou a sonata e acionou o braço daquele tocador de música com a sua
agulha precisa, a fim de ouvirmos uma canção. A tarefa seria só uma escuta
ativa.
Senti, naquele instante, como se o mundo tivesse esquecido
de girar; fiquei estático sem entender porque aquela toada, diferente do que eu
ouvia nos programas de rádio ou de TV, fazia um alvoroço dentro de mim. A voz melodiosa, com o som do violão e outros
instrumentos ao fundo, e até o ruído característico do atrito da agulha no
vinil, imputou para a minha metamorfose.
| Aflorar |
Algumas colegas enxugaram suas lágrimas; os moleques aguentavam - disfarçando - firmes, apesar dos nós nas gargantas. Nossa mestra nos observava com um olhar cativante e doce de quem havia percebido o resultado do “aflorar” em seus alunos. Mais do que conhecimento: a emotividade.
Com a continuação da lição, ficamos sabendo que um dos
compositores daquela música, no caso, da letra, era um conterrâneo nosso que
morava em Beagá: Fernando Brant. A voz, inigualável, de Milton Nascimento,
autor da melodia, mineiro de coração nascido no Rio de Janeiro em 26/10/1942.
Travessia, era o nome da canção cujo título foi inspirado no livro Grande
Sertão: Veredas, do autor mineiro Guimarães Rosa, cuja curiosidade era ser a
última palavra daquela história. Compartilhamos o significado de cada estrofe e
o que aquela poesia poderia dizer para a gente. “Se alguém vai embora, mesmo
que a nossa vida possa ficar escura como a noite, mesmo quando é necessário chorar, precisamos
pensar que é importante não deixar de amar. E se não der certo, melhor não
sofrer.” Mais ou menos assim, percebíamos o que aquela simples composição
estaria provocando em cada um que a ouvisse com atenção. E afinal, era uma
música premiada em um Festival Internacional da Canção e já consolidada dentro
da Música Popular Brasileira – MPB. Tudo isso, fomos fixando atentos para o
momento da arguição em data futura.
Voltei para a casa, naquele dia, pensativo e introspectivo,
continuando a refletir um pouco mais sobre o que cada frase poderia estar
ecoando em meu coração: “meu caminho é de pedra, como posso sonhar?” ou “já não
sonho, hoje faço, com meu braço o meu viver!” Era muito para um garoto que
gostava de sonhar e caminhar pela grande pedra do sítio do avô, sabendo que
aquele ensinamento foi marcante para construir a minha admiração pelo querido
Bituca, a mais bela voz que já ouvi, e por toda a sua obra que busquei conhecer
adentrando pela minha juventude, com o meu “Coração de Estudante” ou entoando a
“Canção da América”, jamais me esquecendo que “amigo é coisa pra se guardar do
lado esquerdo do peito, dentro do coração”, dizendo para os meus filhos que “quem
me ensinou a nadar foi os peixinhos do mar” e “onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada”, pois “da flor nasceu Maria, e de Maria o Salvador”...
Minha vida, minha família, não seriam as mesmas sem toda
essa Travessia!
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