Pedras sob os pés (2014)

 

Por Marcos Almeida

Sempre que ando por ruas calçadas com paralelepípedos lembro da minha infância em minha cidade natal. Ainda hoje, por lá, várias vias permanecem assim, entre elas a que contorna a bela praça central. Rogo para que nenhum político invente moda de escondê-las por debaixo de um asfalto quente e impermeável. Mas, surpreendentemente, as pedras das ruas de Piumhi/MG, nos anos 1970, terra onde meu pai nasceu e viveu até sua adolescência, eram diferentes. Quando lembro dos meus passos sobre elas, ainda sinto aquela dor, pois eram bem salientes e agudas para os pés de um moleque que gostava de brincar descalço nas ruas de terra de Pocinhos do Rio Verde, que deixavam as pernas inteiras empoeiradas. Ter a sensação de insegurança e de desconforto acabou deixando uma recordação do que é mais precioso nesta vida: o próprio viver. A rua Armando Viotti de outrora, onde minha avó Sabina morava, era assim. Aquele chão deixou marcas também em meu coração. Agora os blocos de concreto tomam conta, tudo bem encaixadinho e uniforme. Entretanto, diferente para quem criou aquele antigo quebra-cabeça com infinitas combinações e possibilidades, que somente um mestre especializado conseguiria montar.

Foto em Piumhi/MG - Família Lima Almeida
(Esq/Dir: Paulo, Luzia, Denilson,
Vó Sabina e Renata no colo.
Marcos, Nelma e Jorge.
Acima: Edgard, Rita, Ivete, Zezé, Hortênsia e Wander.

Visitando a região da Serra da Canastra, talvez a maior maravilha de Minas, pude reencontrar com o meu passado onde as pedras sob os pés tanto me ensinaram. Fui tão poucas vezes, quando pequeno, simplesmente por ter que rodar cerca de 300 quilômetros desde Caldas, entre baldeações confusas e sem entender muito bem o motivo de tanta demora para chegar ao destino. Tinha o preço da passagem, além. Em uma das viagens, foi necessário ir até Alfenas e esperar por várias horas o ônibus que seguiria até Passos para depois, fazermos a última baldeação na derradeira locomoção rumo àquele logradouro que encantaria minhas lembranças. O trecho por entre as cidades, banhadas pelo lago de Furnas, para quem só via montanha e, até então, nunca havia visto o mar, nem deixava o sono se achegar entre os trancos e balanços do "buzão". Cada reta da estrada que cortava as águas, como se uma imensa ponte fosse, deixava-me boquiaberto de tanta beleza. Mas passando recentemente por lá pude ver um cenário bem diferente, com planícies secas e sem a tamanha beleza esperada em decorrência de uma grande estiagem que me incomodou muito mais que as pontiagudas rochas.

Calçamento de paralelepípedo - Caldas/MG
Crédito da imagem (desconhecido)

Meu pai, conhecido como Zé do Correio em Caldas, corintiano "doente", em sua terra era chamado de Zezé da Sabina. Ela tocava bandolim e tinha um jeito carinhoso com os netos. Foi o meu genitor quem me ensinou a amá-la e também as maravilhas da Canastra. Sinceramente, nem sei se ele conheceu de perto, como eu conheci, a Casca Danta, tantas vezes mencionada por ele. Tinha um recorte de jornal com uma fotografia linda que se perdeu com o uso, em seu orgulho, mostrando para quem o visitasse. Como ele amava aquele chão. Em suas palavras, não deixava dúvida alguma quando comentava sobre o queijo cru, o clássico da cidade no futebol entre América e Atlético, onde as pessoas assistiam sentadas nos barrancos. Falava ainda da Cruz do Monte, do seu tio Segundo Bruno e de toda a família. Contava suas estripulias com seus irmãos Wander e Edgar, sendo uma delas muito hilária. Em tempos em que a noite, realmente, trazia a escuridão por não ter uma iluminação pública eficiente, os peraltas amarravam um barbante entre uma árvore e um muro, por onde passavam donzelas ao lado de rapazes dignos, porém imprudentes, por andarem com o chapéu sobre a cabeça. Mas quando caminhavam de braços dados sob a armadilha dos três serelepes, sem piedade, derrubava o adorno masculino, fazendo o cidadão voltar para recuperá-lo. Sem poder baixar o nível diante da paquera, voltava sem xingar os traquinas, que ficavam atrás do muro rindo a cada chapéu que rodopiava pela calçada.

Casa da Vó Sabina - Piumhi/MG
"Rua de Bloquete"

Uma vez, pensando nestas histórias espirituosas, eu entendendo ser um menino esperto, com pouco mais de cinco anos, queria logicamente conhecer aquele lugar, começando por explorar as imediações da casinha simples e aconchegante que tinha cheiro do fogão à lenha cozinhando feijão como farinha de mandioca. Em Caldas, crianças nesta fase da vida já andavam sozinhas pelas ruas. Década de setenta, outros tempos, bastava reconhecer as duas igrejas, sendo a Matriz de frente para a igreja do Rosário, separadas por mais ou menos quinhentos metros. Fácil. Atrás da Matriz, avista-se a prefeitura; atrás da outra, rumo a Pocinhos e a Santa Casa. Não tinha erro. Mesmo que as outras ruas paralelas fossem compridas e com construções semelhantes, não era empecilho para uma circulação atenta. Só não seria recomendável seguir pela Avenida Santa Cruz, a saída para Poços de Caldas, pois além de uma forte descida que rumava ao cemitério, criança pequena poderia se perder nos seus medos.  Então, pensei ser tranquilo em Piumhi. Daí, começou a confusão naquela minha cabecinha, pois após sair, sem avisar ninguém, avancei por uma pracinha bem próxima da casa da vovó. Ali cheguei e pensei em voltar. Mas, segui alguns bons metros, virando alguma esquina que não me levaria ao meu porto seguro. Continuei desnorteado, sem deixar nenhuma marca pelo trajeto. Não via nenhuma igreja, portanto sem referência. Eu não estava descalço, certamente, pois a maior dor que tive foi quando percebi que não saberia voltar. Logo vi uma venda, com duas ou três portas altas, como outras que existiam nas povoações mineiras. Era uma casa antiga, tinha um grande balcão. Fiz o mais provável para um desgarrado em um lugar totalmente novo: sentei em uma sarjeta e comecei a chorar. Por obra dos anjos, uma senhora percebeu a minha agonia e perguntou o que me deixara triste. Fui logo dizendo que não sabia como chegar na casa da minha avó. Quando aquela bondosa senhora questionou-me qual seria o nome dela, ao responder "Sabina", tudo ficou resolvido. Ela sorrindo e trazendo-me ao seu lado, percorreu um trajeto bem mais curto do que o da minha aventura. Foi quando parou em sua casa, me convidou a entrar. Eu recusei. Pediu para esperar um pouquinho. Entrou e saiu rapidamente da sua morada, que ficava quase em frente a da minha avó. E me presenteou: quitutes e docinhos para amenizar o meu susto. Acabou sendo uma mistura de anseio e realização.

Fotos: Contos e Recantos de Piumhi

Seria essa venda? Quem sabe...

Depois disso, não me arrisquei mais. Saía somente com os primos ou com o meu pai para visitar os parentes. Em uma dessas oportunidades, visitando a linda casa do tio Segundo Bruno, que conheci somente na sua velhice, degustei a melhor salada de frutas de minha vida, preparada com muito carinho por uma de suas filhas. E sabe o motivo de ser a melhor salada?  Tinha vários tipos de fruta, é lógico, mas uma era especial e foi a primeira vez que saboreei desta maneira: abacate em cubinhos. Achei fantástico e delicioso. Era coisa daquele povo e que nunca mais provei igual.  Sentado à mesa com a “parentaia” pude sentir, mesmo sem entender direito, o quão gostoso era estar com pessoas da mesma origem. Percebia meu pai e suas primas lembrando de histórias maravilhosas de tempos que se foram e que ainda queimavam os corações entusiasmados daqueles que vivenciaram cada momento.

Casa tio José II Bruno - Piumhi/MG

Com base nessas experimentações, reflito sobre tudo o que atualmente me amola. Percebo que é necessário caminhar muito, machucando dedos e calcanhares, o incômodo ao menos ser amenizado. Ao calejar, tudo vai melhorando. Depois passa a fazer parte do caminhar. Até faz falta sentir aquele desconforto. Ou melhor, o que poderá magoar daqui pra frente será o quão liso é um assoalho ou a aspereza do concreto, pois tudo se fez diferente, sem a emoção de antes. Cada sensação surge com a interação. Com as coisas e com os outros. E podemos aprender com as adversidades e com alguém que estende a mão. E não podemos deixar de lado um tempo que não pode ser apagado, especialmente as pedras sob os pés. Ah, essas, jamais!

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