Ponto de encontro - os namoricos em Caldas!

 

Por Marcos Almeida

Aquele mês de novembro era o mais chuvoso dos últimos tempos nas paragens de Nossa Senhora do Patrocínio. Dias antes, Tancredo Neves, candidato ao Palácio da Liberdade, passou com a sua comitiva pelo sul de Minas, empolgando muita gente. Havia um movimento embrionário para sucumbir a ditadura militar e iniciar a redemocratização no Brasil. Caldas, como diziam os antigos, nem estava no mapa para os truculentos fardados. Um engano capital, pois ali havia uma grande reserva de urânio, quase toda exaurida, no conhecido Campo do Cercado, caminho pra Andradas. No fim da década de 1960, sobrevoavam os aviões da FAB para demarcar a área cobiçada. Parecia ser o fiapo de esperança para o povo da quase bicentenária freguesia fundada por Antônio Gomes de Freitas, que pensava ser a tão prometida riqueza que agigantaria os cofres públicos e melhoraria a qualidade de vida de todos. Fora criada até a rádio Urânio, veiculada em um alto-falante da praça. Aquilo tudo parecia ser coisa rara.


Caldas/MG - E o ponto de encontro

Isso tudo e muito mais permeava os namoricos aqui e acolá na praça principal, que homenageava Melo Viana (ex-governador do estado), onde imensas árvores de folhas enormes caíam para enfeitar a calçada portuguesa, com suas pequenas pedras encaixadas pacientemente. As lâminas vegetais, sabidamente, propiciavam alguns escorregões de caminhantes desatentos, especialmente quando as precipitações eram mais intensas. Mas, o charme de outrora, fora extirpado após tanta reclamação, com a alegação de que as raízes adentravam nos canos de esgotos, provocando entupimentos e mau cheiro até nos sobrados próximos. Um cidadão muito conhecido dizia ter aparecido uma raiz dentro da privada de uma das casas da vizinhança. Lenda ou verdade, era o que corria a boca miúda.


Estátua - Praça Caldas/MG

Os bancos eram de concreto. Faziam propaganda de algum comércio ou enaltecia alguma nobre família patrocinadora de sua fabricação. A parte do acento era côncava, facilitando a acomodação das nádegas dos que pretendiam prosear, possibilitando virar apenas o pescoço. Mas, às vezes, dependendo do ou da transeunte, era necessário envergar o dorso para observar sua passagem. Se tentassem disfarçar, a tática era olhar pelo “rabo do zóio”. E quem não se desviasse daquele trajeto, copiosamente rezava o “creio em Deus Pai” ou em seu íntimo dizia: “seja o que Deus quiser”. Quem era mais atrevido, parava diante dos assentados, perguntando que horas seriam, mesmo com um imenso marcador de tempo à vista de todos.


Vista a partir da estátua do Dr. Uriel Alvim

O relógio da Matriz tem como característica da sua numeração estar em algarismo romano. O número quatro, que deveria ser “IV”, por tal simbologia, creio que para não confundir o mais atrasado em seu compromisso – com o 6 = “VI”, que está de ponta cabeça –, foi afixado com “IIII”. E pensando bem, hoje em dia, pouca gente domina essa sequência, em tempos de algoritmos, inteligência artificial e relógios digitais. Tornou-se inócuo um ponteiro percorrer os sessenta segundos para completar seu minuto, pois este somado aos outros cinquenta e nove dispensaram o outro ponteiro de dar a volta para completar a hora. Nem se fala da “agulha” das horas, que “anda mais cansada que folha de árvore em outono”.

Relógio da Matriz de Caldas/MG

E, para não perder a hora, os relógios - de pulso ou das casas - de cada apaixonado deveria estar sintonizado com o da torre da casa de Deus. E o encontro era marcado. Hora ou hora e meia, a fim de evitar confusões. Difícil era para quem morava lá pelas bandas do mercado municipal (atrás da igreja), que não se via o horário pela parte traseira do campanário. E, o jeito, era apertar o passo. Vez ou outra, esquecia alguma coisa. Um presente ou até o guarda-chuva, pra poder paquerar bem abraçadinho debaixo da previsível garoa. Meia volta pra buscar, retornando ainda mais ligeiro subindo até o lugar combinado. O início da noite dava um pouco de privacidade diante dos curiosos e veiculadores de notícias.

E qual seria o ponto de encontro, aquele para ambos estarem no exato momento agendado?

- A estátua!

Estátua Dr. Uriel Alvim - 2025

Bem na praça, em seu início, com olhar atento para quem vem do lado oeste, da parte maior da praça de quem fica defronte com a Matriz, a estátua de um ex-prefeito que também foi deputado. A criançada não dava sossego pro Dr. Uriel Alvim, colocando uma guimba de cigarro por entre os lábios gélidos de pedra ou afixando pedaços de chiclete mascado nos seus olhos. Época de carnaval, serpentinas e um colar havaiano, dando alegria ao entorno. Diziam ser desrespeito com a memória do homem, mas era o que acontecia. E não dava pra julgar ou criar confusão por tais iniciativas. Aquele pequeno monumento, deveras acolhedor, com degraus pelos quatro lados, era perfeito para a espera de quem se atrasava um pouco. Se demorasse mais que dois minutos, gerava a preocupação se seria um desleixo; cinco minutos, pensava-se ter esquecido o encontro; dez minutos, litígio homologado; mais que isso, poderia ser o fim do relacionamento, pelo menos por uns minutos que desencadeavam em uma nova conquista. O barulho da quadra de esportes no Copas, movimento de entra e sai, afugentava os que buscavam sossego.

Porta da Sedinha
(diminutivo de Sede)

De mãos dadas saíam dali. Para os pombinhos que estivessem com os corações ardentes, a porta da sedinha, no fundo da igreja (no porão da igreja, na verdade) seria o lugar escolhido. Porém, era espaço disputado por outros tantos apaixonados. Impossível se aconchegar em seus degraus se estivessem ocupados ou se houvesse alguma reunião de alguma pastoral da paróquia. Vez ou outra, um casal desavisado, começava com as juras de amor, abraços e beijos estalados, e de repente alguém abria a porta por dentro. Susto, risos envergonhados, os jovens saiam de fininho. Para os mais modernos, davam de ombros e recomeçavam as carícias sentados na outra estátua (do Dr. Paulino Figueiredo) no fim da praça ou, um pouco mais distante, na escadaria na Vinícola, com bem menos privacidade, pois ficava na mira dos faróis dos poucos veículos que circulavam.

Estátua Dr. Paulino Figueiredo

Aqueles momentos passavam rapidamente na vida da juventude caldense, após cada badalar de hora, daquele sino que não deixava ninguém se esquecer do exato tempo de finalizar aquele encontro. Ninguém mais esqueceria!

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Mais do que ver, que eu possa visitar!

Caixa de retratos

Zé do Correio, um pai extraordinário!