Um chamado para a alegria!

Por Marcos Almeida

Acordo antes das seis da matina e percebo uma fina chuva caindo sobre o telhado, escorrendo pelas calhas, encharcando vagarosamente a terra do quintal, onde é costume de quem tem origem de gente roceira, como eu, a plantar pelo menos uns pés de couve. Essa precipitação tão necessária, após longo tempo de estiagem, me faz pensar naqueles que precisam ir para os seus postos de trabalho buscando evitar chegar com a roupa toda molhada. Tempos modernos trouxeram facilidades que bem conhecemos. Porém, o chuvisco me faz recordar de uma pessoa fantástica que semeou muita paz e luz pelas ruas da minha pequena e charmosa cidade no Sul das Geraes, Caldas. Ele morava na Avenida Santa Cruz, bem em frente ao colégio Crispim, nos deixando a saudade da sua amizade e afeto. Foi carteiro, enfrentando sol ou chuva, para entregar os telegramas, cartas e encomendas menores, levando mais que notícias ou presentes, a sua presença alegre e de um profissionalismo exemplar. Certamente, quem é da terra do biscoito, sabe que se trata de José Barbosa Filho, nosso querido Zé Coquinho!

Zé Coco com amigos - Caldas/MG

Desde que eu e minha família nos mudamos para Pouso Alegre, na década de 2000, contornar o trevo da cidade na BR 459 e adentrar pela alameda que outrora era ornada por lindas árvores ao lado dos parreirais e castanheiras da Epamig, haviam duas expectativas: ter pedágio de jovens formandos para arrecadar fundos para suas viagens e festas ou ver o nosso querido amigo, filho do Sr. José Barbosa e Dona Cesarina, na janela ou alpendre de sua residência ou em frente ao bar dos Ramos (atualmente é uma padaria). Se ele estivesse por aquelas beiras, era certa a nossa parada, mesmo que de curta duração para não interromper o trânsito, promovendo uma gritaria festiva em cada reencontro, com sorrisos largos pela fraternidade iniciada há muitos anos.

Dona Cesarina, mãe bondosa!

Creio que nossa amizade começou a brotar logo quando comecei a trabalhar na Prefeitura de Caldas, em 1984. Minha primeira função foi de serviços gerais, onde, entre outras tarefas, deveria levar e buscar correspondências no correio. O jovem carteiro, sempre muito atarefado em organizar os envelopes e pacotes para que os destinatários recebessem o quanto antes, dava um “alô” e perguntava se meu pai estava bem. Naquele tempo, a ECT - Empresa de Correios e Telégrafos dominava o mercado de entregas. Antes da internet, das mensagens digitais como temos por agora, tudo girava pela comunicação falada, através do telefone, ou escrita, pelos telegramas e cartas. Portanto, a função do carteiro ia além da simples entrega, mas também pelo sigilo necessário de tudo que passava pelas suas mãos e olhos. Seus passos curtos eram rápidos e até serelepes. Acompanhar o nosso protagonista, mesmo em algum passeio pela praça, poderia ser o início de um trote para futuros corredores de rua, sem deixar de lado a sua risada larga e, no mesmo instante, acolhedora. E pelo reconhecimento da população caldense e também da sua empregadora, tornou-se Carteiro Padrão por alguns anos. Não tinha pra ele. Acabou tornando-se "oconcur" (palavra designada a pessoa ou trabalho que está notadamente fora de julgamento ou competição pelo seu grau de destaque, de superioridade) para valorizar outros carteiros Brasil afora.

Acervo do nosso protagonista

Pouco tempo depois, participei de um encontro promovido pela Paróquia de Caldas, sob a liderança do Padre Sebastião Pereira Dal Poggetto, tendo como palestrante um sacerdote da cidade Juiz de Fora, Padre Antônio das Mercês Gomes. O encontro era conhecido como “Jornada Cristã”. Quem me convidou para participar foi a amiga e colega de trabalho, Nailza Santos. Parecia uma oportunidade para aprender mais a Palavra de Deus e a me entrosar na comunidade. No primeiro dia, os participantes foram recebidos por uma equipe de animação. E advinha quem estava lá, todo animado, cantando, a fim de deixar os participantes bem descontraídos?

Ney, Zé e Padre Vanir (irmãos)

Aquele movimento missionário promovido por uma grande equipe de leigos, além dos pastores citados e algumas religiosas, Irmãs Anália e Maria Inês, me incentivou a dar os primeiros passos nos trabalhos pastorais. Foi um acolhimento incrível que fica impossível citar cada integrante. Pessoas com as quais estabeleci laços de amizade e companheirismo. Um deles me cativou ainda mais, como tanta gente de Caldas e até de outras paróquias da Arquidiocese de Pouso Alegre: Zé Coco. E falar dele, sob uma perspectiva individual, é muito restrito para o tamanho do coração daquele ser humano fora do comum.

Zé observando a brincadeira

Comecei a participar da missa, com mais consciência de cada momento, que antes se apresentava para mim apenas como rito, me deu coragem para dar alguma contribuição para a comunidade. Com essa evolução propiciada pela Jornada Cristã, passei a entender melhor o significado da Eucaristia e a buscar a fé em verdade e espírito, mesmo com tantas falhas. A santidade sempre esteve longe de quem se julga estar muito perto de Deus, como percebi posteriormente. Porém, encontrei pelo caminho vários amigos para me levantar a cada queda. Percebi, com a proximidade do Zé, que a alegria deveria fazer parte de todo esse processo. Sem ele saber, acabou me ensinando a deixar de lado meu jeito rabugento e, às vezes, mal-humorado para apresentar a minha essência jovial com entusiasmo. Mesmo assim, continuei tropeçando e caindo, levantando e recomeçando. Tarefa árdua para os que ficaram próximos a mim.

Carteiro Padrão!

Nos primeiros momentos de efetiva participação na vida comunitária, fui convidado para as excursões com destino para as ordenações de diáconos e sacerdotes, quase sempre em outras localidades. O nosso Zé não perdia uma, pois afinal, além dele gostar de um passeio, seria de ocasião para encontrar-se com seu irmão, Padre Vanir, também muito alegre e divertido. Novidade pra mim, novas amizades conquistadas, um emaranhado de emoções. Algumas vezes, íamos de ônibus fretado; outras vezes, lotávamos três kombis, conduzidas normalmente pelos excelentes motoristas, Sr. Nelson da Terezinha, Lula e Ditinho. Em uma das viagens, dona Maria Calixta, saudosa moradora da Vila Vicentina nos deu a honra de estar com a gente. Rimos muito. Naquela simplicidade, no seu jeito de falar e com a sua gargalhada, nossa queridinha da excursão era um atrativo à parte. Zé Coco demonstrava um carinho especial por ela, bem como toda a comunidade. E muita cantoria para fazer o destino chegar mais rápido.

Casa do Sr. Romeu Silvestre e família

Fazer uma caminhada com a juventude rumo à casa do Romeu Silvestre e da sua esposa Dita, no alto da serra, não tinha tempo ruim. Organizávamos tudo e os anfitriões, com suas filhas Maria José, Valéria e Maria Elisa, além do Paulo Afonso, preparavam um almoço delicioso para toda a turma. Muita gente faminta que nem olhava para o fotógrafo de plantão no instante do clique. Brincadeiras e conversas para manter o grupo coeso, sem dispersão em aventuras fora de estrada.

José Barbosa Filho sempre atuante na PJ

Encontros no pré-seminário: José Barbosa e sua vivacidade, portando pandeiro, máquina fotográfica, apito e até o inseparável radinho de pilhas. Uma parafernália que não faltava em nenhuma ação desenvolvida pela Pastoral da Juventude. Era o mestre da alegria e acabava sendo o nosso garoto propaganda dos eventos missionários e catequéticos. Entre 1985 e 1988, a PJ de Caldas tinha um grupo com reuniões semanais, atividades importantes como a Semana da Juventude, sempre no mês de setembro, além de outras comuns a diversos movimentos paroquiais, onde o querido personagem era o mais demandado. Ele só fugia de uma festa: do seu próprio aniversário, 02 de novembro, por ser dia de finados. Respeitava muito o luto das pessoas. Comemorávamos no dia seguinte, mesmo ficando envergonhado, o que era raridade.

Auto retrato e o ipê florido

Cantava no coral da igreja com outros voluntários dedicados em praticamente todas as celebrações, além de tocar algum instrumento de percussão quando necessário. Conhecia cada pedaço da sacristia: armários, objetos litúrgicos, botões do equipamento de som, nada passava desapercebido à sua atenção. Tinha a habilidade com a matraca da semana santa, conhecia o segredo das sinfonias do sino da Matriz e realizava a reza da Ave Maria ao entardecer com muito zelo e piedade. Foi meu incentivador para fazer dupla com ele na hora do Angelus, às seis da tarde, veiculado no autofalante da igreja: “O anjo do Senhor anunciou a Maria”, ele proclamava inicialmente. Eu continuava: “e Ela concebeu do Espírito Santo”. Era emocionante para quem tivera vergonha até para apresentar trabalho na escola. E rezamos juntos, por muitas vezes, essa linda oração relembrando a importância da Mãe do Salvador. Não só eu, mas muitos outros começaram a superar o medo do microfone com o nosso mestre da simpatia.

José Noel

E o trabalho continuava além das assembleias e da liturgia. Uníamos forças com diversas lideranças para realizarmos a novena de Natal na comunidade Santa Cruz e nas Casinhas. Tivemos diversas alegrias e aprendemos muito com as pessoas mais simples. Zé Coco abria caminho para o grupo que rezaria junto a novena e as crianças eram as primeiras a irem ao seu encontro. Essa ação inspirou o mais ilustre morador de Caldas, na minha visão, a se tornar o Papai Noel por diversas ocasiões, levando a alegria para a molecada. Capitaneava doações para pessoas em dificuldade. Foi atuante na Associação dos Moradores do Bairro onde residiu toda a sua vida, juntamente com outras pessoas fraternas.

Zé Coco, ao centro, com a sua bandeira do PT

Atuamos, juntos com outros leigos da igreja, buscando melhor qualidade de vida para o nosso povo, também no campo político. Fizemos parte da Comissão de Conscientização Política, mobilizando a comunidade, para enviamos sugestões para a Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a nossa Carta Magna de 05/10/1988. Depois, participamos, com outras pessoas queridas, da fundação do PT em Caldas. Fizemos um trabalho ético na política partidária, o que nos deixou com o coração leve, mesmo após deixarmos de atuar no diretório municipal. 

Festeiro

Em 1990, eu e minha namorada Milva (minha companheira de caminhada), resolvemos levar à sério nosso relacionamento. Noivamos naquele ano, para no seguinte, no altar da Senhora do Patrocínio, recebermos as bênçãos de Deus. Zé Coco topou ser nosso padrinho logo quando comemoramos a decisão na casa dos meus pais, numa festinha particular com amigos, regada com algumas poucas biritas e uma jantinha saborosa da dona Ivete. Alexandre Fonseca, Luciano Pontes, Maria José Silvestre, Cleide, Renata (minha irmã), Chico de Assis, estiveram presentes neste evento conosco. Depois, com os nossos filhos crescendo, esteve presente em seus diversos aniversários, a cada janeiro.

Zé Coco era da família

Certa vez, ano 2015 se não estou enganado, chegando em Caldas, como de costume, queríamos encontrar o nosso padrinho. Deu certo. Ele estava lá, como de costume. Chamamos para uma confraternização na casa da minha mãe e, sem pestanejar, pegou a sua motinha e nos seguiu, acelerando a sua juventude jamais perdida. E não foram poucas vezes. Não se recusava a estar junto com quem o acolhia, a menos que houvesse algum compromisso, dos inúmeros que ele normalmente assumia.

Alegria sem medida

Em resumo, fico pensando que o importante na vida é fazermos o convite para quem desejamos acolher e cabe a ele/ela aceitar (ou não), pois a decisão sempre é da contraparte e o futuro não nos pertence. Somos chamados para distribuir alegria e não esperar nada em troca. Isso, José Barbosa Filho, do seu jeito simples, nos demonstrou na prática. E em algum segundo, sem mais nem menos, tudo pode mudar. Acredito que não existirá tamanha necessidade em se despedir com qualquer formalidade quando os encontros foram intensos e fraternos, os olhares foram verdadeiros e diretos, as palavras foram benditas e jamais lançadas como armadilhas. Sim, com o pensamento e corações entrelaçados, alguém que partilhou o pão da amizade permanecerá radiante na trajetória de quem se fez relevante.

Cidadão consciente

Por tudo isso, o que mais posso dizer? Que senti uma leveza imensa ao escrever esta singela homenagem. Fico na esperança de que o caro amigo Zé leia esse texto com toda a sua alegria. Ou melhor, ele está lendo agora, comigo e com você!

No link abaixo, Zé Coco também viveu nos "Encontros em diversas praças"

https://proseandoretrato.blogspot.com/2025/08/encontros-em-diversas-pracas.html


Comentários

  1. Linda mensagem a este grande incentivador nas obras de nossa comunidade e paróquia parabéns

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  2. Figura ilustre!!! Sempre de bem com a vida!
    Muito legal saber um pouco da história do saudoso Zé Coco!

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