Assim eram as nossas esquinas

 

Por Marcos Almeida

Novembro de 2025. Esta semana, iniciada com a celebração da memória de pessoas queridas que já partiram para a eternidade, cada mineiro pode sentir, sem qualquer fôlego, a ausência do imortalizado Lô Borges, artista e fundador do inigualável movimento musical, Clube da Esquina. Sentir a perda física de alguém que trazia acalento aos corações humanos é algo que faz pensar onde as histórias distintas se entrelaçam. Eu não sou diferente, mas relembrei, há poucos dias, uma passagem do início da minha adolescência quando conheci a obra de Milton Nascimento e Fernando Brant, através da composição conhecida no mundo todo: Travessia!(*) Juntando essas duas situações nominadas como coincidências, triste por um lado, mas na certeza de que a perenidade, de quem deixa um legado, é certa, fiquei buscando na minha memória – talvez até na imaginação – quando realmente passei a conhecer todo esse movimento cultural essencialmente mineiro. Também sou mineiro, uai!

Assim eram as nossas esquinas

Conheci algumas músicas do nosso conterrâneo de coração, o Bituca, que viveu a sua infância e início da juventude em Três Pontas/MG, diferente de como acontece hoje, pelas inúmeras plataformas digitais, nem mesmo através de pen-drives ou de CDs. O jeito era ter acesso a um radinho, que em minha casa era mais útil que máquina de lavar roupa (que só fui ter acesso após estar casado). Meus pais ligavam o rádio pela manhã e nem se lembravam de desliga-lo, muitas vezes. Ouviam de tudo um pouco. Na verdade, o que era oferecido pelos programas mais famosos, como Barros de Alencar, Ely Correia, etc. E aquela canção, “Travessia", ali não se ouvia.

Casa(l)

Para conseguir ouvir o que me emocionava, ou seja, um repertório criado por pessoas mais próximas da minha geração, não seria na frequência AM. Um amigo, no início da década de 1980, trouxe a informação de que havia um tipo de rádio que tocava música boa e que eu iria gostar. Mas o aparelho precisaria sintonizar em Frequência Modulada, ou seja, FM. Daí, juntei as minhas últimas reservas em moedinhas do porquinho, pedi para meus pais inteirarem a quantia, e lá fui para as lojas Buri, em Poços de Caldas, comprar meu primeiro aparelho portátil, todo prateado e preto. Não me recordo a marca, mas tinha a sintonia FM. Então, quando cheguei em casa, verifiquei que o alcance era pequeno, mas pelo menos localizei uma rádio com boa qualidade: a Libertas FM, de Poços de Caldas. Agora sim, vou dormir todas as noites ouvindo melodias que me agradam (pensei). Por várias vezes, adentrei madrugada para não perder a sequência que o radialista apresentada com uma voz aveludada e potente: Celso Saraiva. A expectativa era ouvir Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gal Costa, Boca Livre, Maria Bethânia, Zé Ramalho, Raul Seixas, Elis Regina, XIV Bis, Milton Nascimento, entre outros. Fui surpreendido com tamanho acervo e variedade. Acabei conhecendo muita coisa diferente. Talvez, aqui foi a minha primeira “esquina” que acabou me ajudando a tomar consciência de, pelo menos, parte do que posso compreender.

Buteco

Composições lindas, como Cio da Terra (Chico Buarque e Milton Nascimento) e Calix Bento (Tavinho Moura), aprendi rapidamente até pelas apresentações em dias festivos na escola. Era organizado um coral, com muito ensaio, para cantarmos em algum evento. Mais adiante, Maria Maria, Canção da América (ambas de Milton e Brant) e Coração de Estudante (Milton e Wagner Tiso), entoadas em nossas passeatas que realizávamos nas Semanas da Juventude, organizadas pela PJ e Paróquia de Caldas, visando promover a conscientização da comunidade para a liberdade tão sonhada que estava sendo reconquistada com o fim da ditadura militar. Poder expressar nossas ideias e sentimentos, compartilhar a amizade e o compromisso com a democracia, tudo isso ia surgindo de forma paralela ao mundo artístico. Segunda “esquina”!

Beagá

Na fase em que eu e minha companheira de vida, Milva, fomos pai e mãe de crianças, saímos de Caldas para residir em Pouso Alegre. Quase todos os fins de semana visitávamos nossos pais, levando nossos filhos, tendo o privilégio de ouvir, primeiro, as fitas K7 e, posteriormente, os CDs, muita música brasileira em todas as viagens. Mesclávamos toadas infantis com aquelas do nosso gosto, Beto Guedes, XIV Bis, Bituca, e promovíamos uma cantoria dentro do carro para chegar mais rápido ao destino. Nossos rebentos iam assimilando nossos gostos e aprimorando os seus. Fomos até BH, Mariana, Ouro Preto e Tiradentes, numa tacada só, pensando em conhecer mais nosso estado. Isso também foi uma “esquina” pra nós.

Teatro 1

Quando já em Poços de Caldas, na escola de Júlia e Otávio, o Colégio Jesus Maria José, eram promovidas muitas atividades culturais. Em algumas peças teatrais, tivemos a alegria de ver nossos filhos participando e enaltecendo as coisas de Minas. Parecia que tempos de outrora estavam surfando no mar do meu coração cheio de esperança de não deixar os nossos sonhos envelhecerem (parafraseando o poeta). A caracterização dos personagens e o envolvimento da comunidade escolar parecia reviver aquele movimento da década de 1970 em Beagá. Vi assim, outros criarem suas “esquinas”.

Teatro 2

Certa ocasião, meu filho, um pouco mais jovem, perguntou-me sobre o disco Clube da Esquina, que teria visto (acredito que pela internet). Confesso que sabia da existência, mas jamais teria escutado todas as faixas. Uma ou outra música, certamente através de alguma rádio ou programa de TV, fazia parte da minha playlist. Ter um LP não era nada fácil. E quando o primeiro disco duplo, de Bituca e Lô, com tantos outros artistas, em 1972, eu com meus seis anos de idade, seria impossível ter acesso. Mas fiquei me questionando o motivo de não ter procurado conhecer mais, se era tão falado. Com o advento do YouTube, acabei assistindo o documentário desse movimento fantástico nascido na esquina das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro Santa Tereza da capital das Gerais. Fiquei surpreso com tamanha criatividade, amizade e vivência daquele grupo de jovens, quase meninos, que quebraram inúmeras barreiras para se organizarem e deixarem tamanho legado. Lô era muito jovem quando encontrou no violão uma nova parte do seu corpo e da sua alma, fazendo canções que nos embalam para a vida. Não tinha vergonha de ficar sozinho, tocando e cantando, mesmo nas madrugadas, mas experienciando algo que só ele poderia sentir.

Dendutrem

Daí, volto ao passado e percebo que, por esse Brasil imenso, incontáveis “clubes” foram vividos, como tantos que não podiam ter acesso a outros clubs elitistas e fechados. Mas os das esquinas, eram abertos, de graça, com graça e harmonia, sorrisos sinceros, sem hora pra terminar o show. Em Caldas, nossa “esquina” nos anos 1980 era a estátua do ex-prefeito Uriel Alvim, em frente ao Palácio da Uva, naquela praça maravilhosa, onde juntávamos uma turma com violão, sanfona, pandeiro e vozes, para cantarmos de tudo um pouco. E quem chegava também era bem recebido para compartilhar a alegria de viver e buscar ser feliz. Assim eram as nossas esquinas!

Ouro Preto/MG

(*) Escrevi essa passagem poucos dias atrás, sem saber que Lô Borges estava internado na UTI, mas já sabendo do diagnóstico de demência de Milton Nascimento. Link abaixo para a ler:

Um dia de aula e a minha metamorfose


Viajante


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