Crônicas
Ruídos adversos: a
fábula do “meu zuvido num é urinó”! (Out/2025)
Por Marcos Almeida
Já não bastasse aguardar tanto tempo pra ser atendido por um
doutor médico, achatando a minha bunda numa longarina que mais parece um
colchonete de courino, minha audição permanece incomodada, não mais com a TV
que ficava ligada pra ajudar o tempo passar, desta vez com alguns portadores de
smartphones que só encaram um check-up
se puderem assistir os seus vídeos. Não bastasse olhar, ter legenda e, ainda, com
o volume elevado, aquela mesma narração da IA sobre cenas que se esforçam para
serem engraçadas. Depois, uma melodia daquelas antigas, tipo "Tema de Lara" ou "Je Taime - Moi Non Plus",
seguidos, sem perder o fôlego, para uma música funk que entrou desavisada. O “smart-expectador” tenta pular para o próximo
(o tal next), mas acaba repetindo aquela batida funkeira.
Depois, ouço forçosamente as conversas das secretárias, sobre
pacientes impacientes e suas rotinas pessoais; ainda, o roncar de algumas
barrigas de acompanhantes pela proximidade da hora do almoço, juntamente com aquelas
risadinhas inoportunas de vídeos com suas piadas prontas. Pernas inquietas,
fazendo algumas cadeiras rangerem. O choro estridente da criança –
compreensível – com a mãe calmamente tentando amenizar a situação. Um homem que
não para de tossir, puxando, em seguida, o catarro para o seu âmago. Como se
diz lá na roça, “meu zuvido num é uniró”!
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| Menino do Mato |
Logo após o brado do próprio médico que, dessa forma, evita a repetição do meu nome por entre tantos ruídos, adentro para a consulta. Assento-me em uma cadeira confortável. Ele começa a me fazer inúmeros questionamentos logo após encontrar os meus dados no seu imenso notebook, imponente sobre um suporte, impedindo o olho no olho. Pior ainda, com o barulho da ventoinha. Com isso, a fala mansa do profissional, tem seu volume aumentado; minha resposta, acaba sendo curta, diante das questões fechadas. Sim; não; sempre; nunca. Foram essas as respostas, majoritariamente. E que termine essa tortura, pensei olhando para o chão.
De repente, ele chama, por três vezes, a secretária, que atendia
na recepção. Impossível ela ouvir nas duas primeiras invocações. Porém, na
terceira, foi escutada até no prédio vizinho, cujas janelas estão uma diante da
outra. Ela chega afoita, o médico a orienta, insiste comigo para me deitar na
cama hospitalar, que balança com meu peso, a fim de me examinar, após o desenrolar
desajeitado e ruidoso de um enorme papel toalha sobre o leito. Pronto, matutei.
Agora, vem o veredito, digo, o diagnóstico.
Auscultou meu “bronze” e tórax, gostou. Abri minha goela, abaixou
a minha língua com um palito de sorvete (novo) e quase golfei. Então, pedi para
verificar os meus ouvidos. Limpos. Insisti, pois estavam sensíveis. Nada certo.
Ele olhou novamente. Limpo. Saindo de perto de mim, jogou uma caneta sobre o piso
frio e eu me levantei preocupado e irritado. Ansioso, querendo vazar daquela
sala magicamente silenciosa com inúmeros barulhos.
- Misofonia! Disse o médico!
- Engano seu! Jamais odiei ou desprezei as mulheres...
(resposta de quem não prestou atenção).
- Você não entendeu o que eu disse? Mi–so–fo–nia! Tudo bem
que “miso” em grego significa “aversão”. “Fonia”, refere-se ao som. Compreende?
Seguiram explicações detalhadas, resultando em minha angústia
por não poder mais voltar pra minha roça, onde nem o mugido da vaca me incomodava.
Um saco cheio após o outro (Out/2025)
Por Marcos Almeida
Quem atravessa a famosa rua Assis em Poços de Caldas, sul
das Gerais, sabe bem que é uma tarefa de paciência. Parece que todos os carros
do mundo resolveram traficar por ali, nesta segunda-feira de uma semana após a
que outrora era do saco cheio. Qualquer um pode ter constatado que tudo isso
reverberou pela cidade inteira, por todos os burgos mais populosos desse
cantinho do estado comprimido com o vizinho paulista.
| Poços de Caldas/MG |
Mas, ops! Quem enfrenta essa leitura, pensando saber o final, percebeu que traficar não é a palavra adequada para representar o ato de transitar pelas avenidas? Um erro grotesco que deu medo até a nossa quinta geração. Mas, para quem viveu por nove dias seguidos de forma leve (alguns praieiros, outros montanheiros), sem pensar no amanhã, talvez esteja agora sendo traficante de insultos e ofensas nesse trânsito compreensivamente de zona azul.
O menu de abusos começa pelas motocicletas, num arregaço de
velocidade e estrondo, sem paciência para esperar o verde, porque um bom (no
sentido de mau) motoqueiro não amarela e nem fica vermelho de vergonha, mesmo
se entrar pela contramão, só pra chegar mais rápido ao destino. Eles não
escutam, porque performam de capacete imune ao xingo alheio, mantendo um olho
no velocímetro e outro no aplicativo.
Os motoristas de van, os de passeio com mães e pais velozes
e furiosos, menu degustação, também correm para a comida não esfriar, enquanto
o resto do mundo deveria ficar quieto em casa para a aula não começar sob
retardo. Em frente à escola, a dupla, não de alunos, mas de fila, que come uma faixa
de passagem dos outros atrasados que saíram quase uma hora adiantados. Uma
buzina estridente, um grito eloquente, retrovisores se chocam, estilhaçando
vidro e plástico, e meia dúzia responde em monossílabos ou em gestos; quem
olha, entende largamente.
- Absurdo, estou de saco cheio!
O dono da bola (out/2025)
Por Marcos Almeida
Cinco contra cinco, formação básica no campinho da várzea.
“Cinco vira, dez acaba”, como definido nas tábuas das antigas leis da molecada.
Time com camisa, outro sem. E o dono da bola, vai aparecer?
| O dono da bola |
- Pai, mãe, tô indo no campinho! Tchau!
- Onde oce vai menino? Já fez sua lição?
Assim acontecia em quase todas as casas. Em outra, pais
requintados compravam as melhores bolas de capotão para o filho de cabelo de fogo.
O time com camisa, tradicionalmente, induzia a outra equipe
escolher o lado pior do campo. Mas como só tinha um vestiário, não precisando usar
camisa não tinha direito de uso, e lá dentro combinava-se a estratégia dos
uniformizados pra vencer, de qualquer jeito, com safanão e pedrada se
necessário fosse. Os de fora sabiam e não poderiam fugir da disputa.
O dono da bola chega, mas não joga literalmente. Dizia não
fazer parte de nenhum dos times, mas cá entre nós, todos sabiam o seu lado. O
juiz era parceiro do dono da bola e apitava favorecendo a turma que parecia
fardada; os que não tinham blusa, inconformados com isso, revoltaram-se. Apito
inicial. Um dos descamisados arrepia e dá a primeira pancada de tanto que havia
apanhado em outras partidas. O dono da bola pisca para o capitão da equipe mais
forte e dá o sinal para revidar com força. Começa uma briga generalizada, na
faixa estreita.
O juiz lavou as mãos porque a torcida dos bem vestidos
ajudava a dar cacetada nos pobres coitados. As mães dos meninos pobres, aflitas,
ficavam do lado de fora do alambrado; os pais gritavam, ativaram pedras que
caíam antes de atingir alguém do labo bom do gramado. Ação inócua.
Um jogo de futebol dura noventa minutos se não houver
prorrogação. Mas havia transcorrido duas longas horas sem fim. Um time batia;
outro desfalecia. Os oponentes desnudados, perderam tudo, calções, meias e
calçados, todos machucados, famintos e desorientados. O seu lado do campo, todo
desgramado. Até que o juiz conversa com o dono da bola que jamais sujaria as
suas mãos, porque existiam torcedores fazendo o trabalho sujo. Pediu a sua bola
para dizer que seria a hora da paz, justamente no momento que o repórter do
bairro apareceu.
- Uma paz após a extirpação de uma equipe? Questionou.
- Mas foram eles que começaram. Disse o juiz.
- Vamos apertar as mãos e prometer que nunca mais ocorrerão
tais brigas! Concluiu o dono da bola, que se autoproclamou o herói de toda essa
história!
E o dono da bola saiu em sua glória procurando outro
campinho, sei lá por qual motivo...
***
O espólio (out/2025)
Por Marcos Almeida
Os estudiosos do direito que nos digam, sobre essa palavrinha esquisita, momento único após o falecimento do “de cujus”, que antes unificava, agora torna-se memorável pela sua partilha. Quem herdará o quê?
| Astúcia e sabedoria |
Se tem patrimônio, a divisão; se não tem, a lamentação. Melhor ter ou não ter? Eis a prerrogativa interrogativa indireta.
Calma, não me culpem por trazer um tema aparentemente relacionado ao óbito de alguém querido. Provoco: quando se trata da drenagem de um “ator” amplamente conhecido, antes com sua imunidade compadecida, que aparentemente sai de cena, como se morto fosse antes mesmo de esfriar o corpo, como dizem as más línguas.
Se é que alguém me entende, a briga pela herança começa com o doente acamado, que ameaça fazer um testamento onde ele mesmo é o beneficiado. Por vezes, promete incluir um filho com a outra; ou um amigo leal e ocasional, por seu poder atual. Não quer finalizar seu tempo sem soltar um soluço fatal. Um marginal, ou seja, à margem do que pode determinar, sendo escrivão, parece que é o dito cujo cutucando a onça com a vara curta: fora da nação.
| Por entre as sombras Sob certo ponto de vista |
Outro filho fica enciumado; a meeira quer inventariar, enquanto outros sucessores parecem não se importar com o falso legado, evitando arriscar o que o nome do mentor arregimentou a fórceps. Ninguém pensa na urna de seis alças antes da data do luto, porque pode estar entrelaçada por entre bits e falsas impressões, sem o pretendido registro em cartório por entre duas vias carbonadas. Até o juízo final.
Repensando o espólio, jamais poderemos esquecer que além dos bens e direitos existem as dívidas que nenhuma oração poderá quitar. Basta o cálculo, crédito menos débito: sinal trocado pode ser a pior transmissão a se fazer, correndo ainda a taxa do estado e honorários, necessário rachar. Afinal, alguém precisa quitar.
| As colunas central e lateral Sob certo ponto de vista |
No frigir dos ovos, desde que em vários cestos, cada qual corre para salvá-los e que não vire omelete. O problema é que passado o tempo, mesmo se de chocolate, todos apodrecem. Seria melhor ter uma biblioteca para repartir os livros onde o conhecimento não se perde. Só as chamas poderão queimar pensamentos insanos de adoradores, mas jamais as palavras proferidas pela boca amarga e seca do desenganado.
Por isso, no auge da sucessão, a extirpação do processo é o último desejo. Se caducar, tudo acaba, é o que mais se deseja o testador. Mas e a Lei, se tornará omissa?
O que isso tudo quer dizer? Não sei, não sou doutor advogado!
Cálice, por ora, afastado! (Set/2025)
Por Marcos Almeida
Depois que a multidão se dispersou, as casas foram renovadas por novas consciências que há muito não se encontravam. A sandália perdida em um jardim. As roupas coloridas nos varais, aguardando o primeiro sol após aquele dilúvio na avenida. Uma enchente de vida e luz! Quem poderia esperar?
O vento fez a sua parte, mesmo antes do alvorecer. Assoprou tanto que muitos nem dormiram. Sofreram com pesadelos. Acordaram. Reescreveram. Arrependeram de tudo o que fizeram entre quatro paredes, por entre os bastidores, longe dos microfones e holofotes, mas com uma plateia de ouvidos atentos diante da cortina de seda.
Enroladas as bandeiras, rebaixados os púlpitos, o oceano colorido, mais para amarelo e vermelho, incluindo o branco e o preto, para ninguém jamais ressignificar o chão-que-nos-alimenta. E quem não foi, sentiu-se representado, jamais abandonado. Mesmo quem ainda não caminha unido, mas junto está: famoso mesmo barco. Ou seria no mesmo rio em diversos barcos?
Pode chorar, sorrir, abraçar, só não convém se enganar. Cada pedra em que se pisa é a conexão com o futuro. Mesmo posto do passado, do alienado, do pneu furado, bandeira equivocada, porém o palanque é outro. Respeito. Carinho. E se a música inspirou, o coração indigente ressurgiu com a esperança de um novo regimento liberto.
Entoou o multiculturalismo, a ideologia, a sinfonia, um Pai: cálice, por ora, afastado!
“Para não dizer que não falei das flores”, nos percebemos no início!
Anis tinha no carvalho! (Set/2025)
Por Marcos Almeida
Zé Chico vivia perambulando entre a praça e o mercado daquela pequena e pacata cidade. Dormia onde "dava na telha", desde que estivesse com o seu pinico e não perdia o sono por nada. Parecia sempre estar com pressa, apesar da sua satisfação em dizer que nada tinha pra fazer. O seu compromisso era com o ócio e a fantasia, apesar de ter trabalhado por muito tempo na explosão de pedras. Enganava-se, entretanto, quem o julgava alienado. Conversava com ricos, pobres e remediados. Lia o semanário de sete páginas todos os domingos. Tinha o dom de imitar o jeito de falar do vigário da paróquia e até o sotaque esquisito do médico estrangeiro do postinho. E sabia costurar todas as histórias que ouvia e que seriam munições para a sua narrativa cotidiana.
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| Boteco tradicional de Minas |
- Fala Sagu! Vê um café e dois pães com manteiga pra mim!
Sagu era o dono do boteco, que tinha penas um mictório "uni-sexy", que servia desde fumo de rolo até secos e molhados.- Vai pagar de que jeito, Zé Chico?
- Fiado, uai!
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| Trem bão |
Zé Chico ameaçou contar o que sabia da vida familiar do botequeiro, marido da beata mais famosa daquelas bandas e que frequentava o gabinete do executivo periodicamente.
Porém, chegou um jagunço de dois de altura por três de largura, que deu uma peitada no pobre coitado. Zé Chico caiu. Mas antes de estatelar no chão, bateu a cabeça no tonel de carvalho, onde licor de anis tinha.
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| Tonéis |
- Justiça!
Era o pedido dos que não aceitavam tamanha violência por um café pequeno e pão.
Porém, o dono de mais da metade da cidade que observava de perto, por acaso também senhor prefeito, disse:
- Anistia pro jagunço! Ele sempre me protegeu da justiça sem pavor!
Mas quem seria o jagunço? O padre, o médico ou o monstro?
De repente, Zé Chico acordou e disse:
- Anis tinha no carvalho!!!
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| Pinico = urinó |





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